Crítica | Retrato de um Certo Oriente: A jornada de quem não sabe parar
O2 Play Filmes/Divulgação

Crítica | Retrato de um Certo Oriente: A jornada de quem não sabe parar

Em Retrato de um Certo Oriente, o cineasta Marcelo Gomes nos convida para uma viagem que é, ao mesmo tempo, geográfica e existencial. O filme, baseado no romance de Milton Hatoum, explora o território nebuloso da imigração, das relações familiares e das tensões entre culturas. Entre o mar e a selva amazônica, vemos o destino de três personagens desabrochar com o peso da história e o frescor de novas esperanças.

A história começa na beira de um mar revolto, não apenas físico, mas emocional. Emilie (Wafa’a Celine Halawi) e Emir (Zakaria Kaakour), dois irmãos libaneses, são retirados de sua terra natal em meio ao caos da guerra. Para escapar da tragédia, partem para o Brasil, onde o desconhecido os espera. O mar, sempre imprevisível, é como um espelho das suas próprias angústias: eles embarcam com promessas de um novo futuro, mas a viagem os leva também a confrontar seus medos mais profundos.

Emilie é uma jovem noviça católica com o coração dividido entre a obediência e a liberdade. Sua jornada é marcada por um encontro inesperado com Omar (Charbel Kamel), um comerciante muçulmano que, no navio, se torna seu amante. O romance, que nasce como uma chaga entre o proibido e o desejado, toma ares de um conflito sem volta. Enquanto Emir, sente a dor da perda e do pertencimento, Emilie se lança no novo, abraçando o que parece ser uma possível redenção.

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O filme levanta várias questões: o que Emilie e Emir deixaram para trás ao se mudar para outro continente? Que tipos de violências enfrentaram a ponto de partir? Quais eram suas relações com o Líbano, com a religião e com a família? O que pensavam do Brasil quando a ideia lhes foi apresentada?

O Líbano, com seu cheiro de guerra e saudade, é deixado para trás, mas o Brasil, com suas cores e sons exóticos, não é ainda um lar. A mudança, como todo deslocamento, é mais do que geográfica; ela é psicológica, emocional e, por vezes, fisicamente dolorosa. A relação entre os dois irmãos, cada vez mais distante, ecoa a luta de quem tenta se encontrar em um mundo que não entende. Emir, como uma onda do mar, segue em constante movimento, mas nunca se acalma. O que ele busca? O que ele quer? Talvez um lugar que possa chamar de seu. Mas como pode alguém encontrar seu lugar quando não sabe onde se encaixar?

A fotografia que dialoga com a linguagem estática de um retrato

A cinematografia de Pierre de Kerchove, com suas imagens em preto e branco, constrói uma atmosfera de introspecção e mistério. O filme tem uma linguagem que flerta com o teatral, com seus silêncios e pausas, como se cada olhar carregasse o peso de séculos. A escolha de um formato de tela mais achatado (4×3), amplifica a sensação de claustrofobia e de limitação, como se os personagens estivessem presos em sua própria história, tentando desesperadamente encontrar um escape.

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O estilo estético de Gomes, mais rígido e controlado do que o habitual, dá à experiência um tom de preciosismo, como se estivéssemos em uma exposição fotográfica onde o mundo se adapta à visão da câmera. Esse rigor estético, embora belo, torna a narrativa mais obscura, dificultando a conexão emocional com os personagens.

Enquanto a tensão entre Emilie e Emir cresce, o romance proibido da protagonista com Omar ganha espaço. O amor, no entanto, não é o único sentimento que circula pela trama. O filme se move entre o desejo e o medo, entre o pertencimento e a exclusão. À medida que o trio chega a Manaus, as águas do rio Amazonas são alegorias de um caminho sem fim, onde os personagens, como barcos à deriva, buscam o que ainda não sabem nomear.

Liberdade ou solidão?

A viagem dos protagonistas também faz um dialogo com o exílio. Não é apenas a terra natal que se perde, mas algo mais profundo: o próprio sentido de identidade. O estrangeiro, que sempre vê o mundo com estranheza, carrega essa desordem dentro de si, uma desordem que não se resolve. A mistura de línguas – árabe, francês, português – ecoa a ambiguidade que permeia a vida dos imigrantes. Eles são, por definição, atravessados por mundos que não pertencem totalmente a nenhum deles.

Em meio a esse turbilhão de sentimentos, o filme revela um olhar sensível para a solidão e para a busca de pertencimento. Emilie, que um dia partiu com medo e incerteza, começa a se desenhar em Manaus como alguém que encontrou seu porto seguro. Omar, o amante, oferece a ela o que os outros personagens não podem: um futuro. A relação entre eles, por mais simples que pareça, é o último fio de conexão com um mundo que a jovem pode chamar de seu.

Mas Emir, que vê tudo com um olhar de quem nunca se encaixa, está em constante fuga. Para ele, o movimento é a única forma de existir. A ideia de parar, de se acomodar, é algo que o corrói. Ele precisa se mover, precisa da dor da incerteza, da agonia de não saber o que virá. Seu olhar, cada vez mais perdido, busca respostas em um futuro que parece distante e inalcançável.

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Uma mesma maré, dois destinos distintos

Ao longo do filme, a figura de Emir funciona quase como uma representação da luta interna de quem não encontra seu lugar. Seu corpo viaja, mas sua alma permanece aprisionada ao que ficou para trás. O que poderia ser libertação se transforma em melancolia. O filme, ao acompanhar sua jornada, mostra como a falta de pertencimento pode se transformar em uma prisão, onde as correntes são invisíveis, mas igualmente opressoras.

Por outro lado, Emilie, com seu amor por Omar, encontra em Manaus a promessa de um futuro que antes lhe parecia inalcançável. Ao contrário de Emir, ela encontra um destino, uma certeza que, talvez, não precise de respostas. A sua âncora é o amor, simples e puro, e é isso que lhe dá força para continuar. Ela abandona o barco e, com isso, finalmente se liberta.

Retrato de um Certo Oriente é uma crônica de viagens, de encontros e desencontros, de identidades que se moldam e se transformam. É sobre o que acontece quando a vida nos leva para longe, mas, ao mesmo tempo, nos faz retornar a nós mesmos. Entre o amor, a perda e a busca por um lugar no mundo, o filme de Marcelo Gomes se torna um retrato sensível e delicado de quem se arrisca a viver em constante movimento.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.