Uma das belezas do cinema de horror é que, às vezes, nem tudo necessariamente precisa ser explicado para que aquele seja considerado um bom filme. Poderia dizer que Verão Fantasma se encaixa nesse quesito.
Disponível gratuitamente durante todo o mês do Orgulho no perfil do Vimeo do diretor Matheus Marchetti, o longa não se preocupa em dar todas as respostas na mão do espectador mas, em troca, oferece boas composições imagéticas e jogos de cena intrigantes do começo ao fim.
Uma ópera escrita com sangue
Em Verão Fantasma conhecemos Martin (Bruno Germano), um rapaz que está em busca de um amigo de infância desaparecido nos arredores de uma antiga casa de praia de sua família. Durante sua empreitada, o local e todo o mistério que o envolve também se tornará o epicentro para o nascimento da paixão entre o garoto e Lucas (João Felipe Saldanha).
Se alimentando de referências do terror da década de 80, sendo uma das mais óbvias, o “Sexta-Feira 13” de Sean S. Cunningham, Verão Fantasma já começa com um sequência curiosa mesclando a conhecida estética de VHS, onde temos uma fotografia envelhecida e repleta de ruídos na imagem, com cenas que se tornam cada vez mais sangrentas conforme um solitário piano se une a uma potente guitarra e bateria que às sonorizam.
Essa escolha artística, por si, já atiça a curiosidade de quem o assiste, afinal, o amontado de imagens inicialmente desconexas, particularmente, me remeteram a alguns do primeiros vídeos virais das famosas creepypastas que surgiram no inicio da internet e que apavoraram uma geração. “Isso é real? Se sim, existe algum significado por trás disso?“
Além disso, esse pouco mais de um minuto de introdução já entrega, em parte, o tom que a narrativa pretende seguir durante as quase 2 horas de projeção.
A naturalização do protagonismo LGBTQIAPN+
Um dos trunfos de Verão Fantasma se dá na naturalização da relação, neste caso, entre dois homens e o fato disso não ser uma “grande questão” que obrigue a narrativa a ser paralisada para que alguma explicação seja dada e sem a necessidade de questionamentos de terceiros que, em grande parte na vida real, são invasivos e desnecessários. Os personagens são o que são e isso já é o suficiente.
Além disso, o fato do protagonista, Martin, ser um garoto com um corpo fora dos padrões que a sociedade considera como aceitável, traz mais uma camada de representatividade, reforçando a mensagem de que o seu tipo de corpo também é atraente e desejado por outras pessoas.
Mas, claro que nem sempre foi assim e, para entender melhor o contexto de como a comunidade LGBTQIAPN+ vem sendo retratada no gênero de terror através das décadas, te convido a também conferir o especial “Entre a diversidade e o medo: a cultura queer e o cinema do terror”, disponível aqui no Conecta Geek.
Sempre teremos jovens no meio do mato
Como citado anteriormente, uma das alusões trazidas neste projeto envolve um grande sucesso do terror responsável por tornar o fato de acampar em um grande pesadelo.
Então, é claro que “Verão Fantasma” não se resumiria apenas no desenvolvimento do relacionamento dos rapazes e, para isso, são adicionados mais quatro indivíduos no decorrer da história sendo um deles, Alice, a prima de Martin interpretada pela excelente Nani Porto.
Cada um desses jovens tem suas próprias questões que serão abordadas em maior ou menor grau no caminhar do roteiro mas, sem dúvidas, uma das mais interessantes envolve o personagem de Matheus Paiva, Vítor, o qual entrega ótimos momentos.
Além de ser protagonista de uma das cenas mais impactantes de todo o longa, o ator também consegue enganar em certa altura não apenas os seus colegas de cena como também a própria audiência, tamanha veracidade corporal apresentada.
Os mistérios do oceano
Assim como boa parte do mar que ainda não foi explorada pelo homem, o roteiro de “Verão Fantasma” esconde alguns bons segredos ao mesmo tempo que nos permite mergulhar até certa profundidade.
Não ache que esse é um daqueles títulos de difícil compreensão ou cheio de signos e metáforas, pois ele não é. Conseguimos entender com a facilidade o por que um personagem precisa sair do ponto A para chegar ao ponto B. Porém, quando se trata especificamente da mitologia criada, a resposta pode não ser tão clara, exigindo um pouco mais de atenção para que seja compreendida.
Os elementos de terror são apresentados aos poucos e vão ganhando velocidade a partir do seu segundo ato. É nesse momento também que o lado “ópera rock” começa a tomar conta por completo da narrativa com composições elaboradas originalmente para o longa e melodias que são agradáveis ao ouvido. Mérito da dupla Nicolas Stenzel e André Zappalenti que assinam o componente musical da obra e unem o lírico com contemporâneo, trazendo o violino clássico e seus similares mas sem deixar de lado os sintetizadores tão característicos da atualidade.
Essa construção é realizada de forma inteligente e, apesar dos estilos musicais distintos, eles se complementam de forma harmônica durante o filme e não atropelam um ao outro. Se eu tivesse que escolher um destaque, provavelmente, selecionaria a faixa “Canção de Marinheiro” interpretada por João Felipe Saldanha. Voz e violão se encaixam lindamente em uma letra intima que traduz bem o turbilhão de emoções do início de uma paixão.
Porém, como nem toda água é doce, existe uma sequência envolvendo um casal caracterizado com roupas de época que, de acordo com o meu gosto pessoal, se torna extensa demais, tomando um tempo de tela que poderia ter sido utilizado para desenvolver outras situações.
É verdade que, de todas as músicas presentes na trilha sonora, esta é a que mais se assemelha as características de uma verdadeira ópera com suas grandes notas que exigem ao máximo da potência vocal de seus interpretes, algo que o ator Roberto Sargentelli entrega com facilidade. Porém, após um tempo, se torna desgastante acompanhá-la, sendo esse um dos motivos que, momentaneamente, fez com que a história me perdesse.
Outro ponto que me causou estranhamento e sensação de deslocamento dentro do que estava sendo apresentado se refere ao personagem do sorveteiro interpretado pelo ator Tony Germano.
Suas linhas de diálogos e sua atuação caricata entregam uma artificialidade que bate de frente e destoa do tom mais natural dos demais atores. É evidente que, dentro da proposta, isso o torna quase como um letreiro vivo que reforça que algo está terrivelmente errado, porém, acredito que dentre todas as coisas apresentadas na produção, esta em especifico acaba se tornando desnecessária.
Nem todo jumpscare, mas sempre um jumpscare
Como esperado, Verão Fantasma não foge da ideia de soltar alguns jumpscares durante o percurso, mas, apesar de alguns já esperados, a montagem consegue fugir algumas vezes da máxima do “ruído estridente seguido de uma imagem graficamente apavorante”.
Além disso, o fato de não utilizar a todo momento o artificio citado acima, ajuda a reforçar a ideia do questionamento mencionado no início desta crítica: O que eu estou vendo, é realmente real?
E, apesar de ser uma produção independente, a maquiagem feita por Julia Fioretti é convincente e consegue cumprir o seu papel ao embutir elementos aquáticos no estágio final das vítimas, conversando assim com as questões levantadas sobre os mistérios do mar no decorrer da projeção.
A beleza e a bizarrice
Sendo o longa de estreia de Matheus Marchetti como diretor, temos como resultado um trabalho competente, tornando-o uma boa promessa pra o futuro. O seu modo de contar a história de Martin é envolvente e, assim como o personagem, vamos sendo tragados para aquele universo a cada novo acontecimento.
Sua montagem é dinâmica e, em conjunto com a fotografia comum de João Paulo Belentani, intercalam cenas cotidianas que podem ser consideradas até simplórias demais e sem grandes atrativos mas que, ainda assim, exaltam as belezas naturais do cenário com momentos onde até mesmo o elemento mais trivial como um sorvete de morango, por exemplo, se torna algo medonho.
Ao assistir Verão Fantasma esteja preparado para uma experiência diferente a cada ato e não se apegue a pré-conceitos e nem se limite a taxá-lo como um “simples musical”, pois ele vai além disso. E é aí onde mora a beleza dessa produção. O gore e o lúdico se encontram em certo ponto e o resultado disso é uma ótima contribuição pro cinema nacional, seja ela no âmbito de terror, queer ou em ambos.
Marchetti continua produzido novos projetos e seu próximo longa divulgado como “uma odisseia de amor na cidade dos mortos” chamado “O Labirinto dos Garotos Perdidos” com certeza é algo para ficar de olho, pois, depois de “Verão Fantasma”, o leque de possibilidades se tornou muito maior e eu mal posso esperar para conferir o que vem a seguir.
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