Zoe Kravitz dirigindo o filme Pisque Duas Vezes via EW
Zoe Kravitz dirigindo o filme Pisque Duas Vezes via EW

Espaço das mulheres no audiovisual: vitimismo ou desigualdade?

O Dia Internacional da Mulher, celebrado neste sábado 08 de março, é uma data marcante para celebrar as conquistas e singularidades femininas. Em um ano que Fernanda Torres foi indicada ao Oscar de melhor atriz pelo filme Ainda Estou Aqui, é tempo de reconhecer a necessidade de falar da representatividade do gênero no audiovisual.

Além das atrizes, é interessante observar quais as perspectivas da mulher dentro da indústria atualmente e estabelecer argumentos e panoramas que respondam os limites do que dizem ser vitimismo e o que é uma corrida por espaço em um ambiente tão concorrido.

Embora as mulheres representem a maior parte da população brasileira (51,8%, segundo o IBGE), elas seguem sendo minoria no mercado de trabalho, com uma presença ainda mais desigual no setor audiovisual. Uma pesquisa feita pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) em 2016, analisou 142 longas-metragens lançados comercialmente em sala de exibição e confirmou que a maioria das histórias produzidas no país foi feita do ponto de vista masculino.

A atuação feminina no audiovisual, no entanto, tem se fortalecido, e, apesar das dificuldades, é possível observar uma resistência crescente por parte das profissionais em quebrar as barreiras históricas impostas. Em uma conversa com a professora Érica Modesto, que leciona no curso de Documentário da EBAC e tem mais de 10 anos de experiência no setor, é possível perceber os desafios que as mulheres enfrentam diariamente para conquistar espaço. A presença feminina nas funções mais técnicas e de liderança segue sendo uma luta árdua, e o preconceito, muitas vezes sutil, ainda se faz presente.

A Distribuição de Poderes no Setor: Homens no Comando

A pesquisa realizada pela Ancine em 2016, que analisou 142 longas-metragens lançados no Brasil, revela uma realidade alarmante: 68% dos roteiros de ficção foram escritos por homens, assim como 63,6% dos documentários e 100% das animações daquele ano. Apenas 19,7% dos filmes foram dirigidos por mulheres, nenhuma delas negra. O domínio masculino nas funções mais prestigiadas é claro, o que evidencia a dificuldade de mulheres em alcançar posições de liderança em um mercado que, historicamente, as marginaliza.

Para Érica, esse cenário se reflete em um contexto social mais amplo, onde as mulheres frequentemente ocupam as mesmas funções – como produção, figurino e maquiagem. Funções essas que, embora essenciais, não possuem o mesmo peso simbólico ou prestígio que outras, como a direção de fotografia ou som. As mulheres, assim, enfrentam um estigma que as impede de ocupar posições mais “pesadas”, como assistente de câmera ou em áreas técnicas, muitas vezes associadas à ideia de que são funções “masculinas”, que exigem esforço físico ou qualidades como dureza e resistência.

A direção de Zoë Kravitz no longa “Pisque Duas Vezes” (2024)

Com sua estreia na direção, Zoë Kravitz (filha de Lenny Kravitz e Lisa Bonet) traz ao público uma obra que lembra o suspense psicológico de Corra! de Jordan Peele, onde a confusão mental e os maiores medos de seus personagens são explorados com uma tensão crescente. O filme mergulha nas complexidades das relações humanas e nos pesadelos que se escondem sob a superfície de uma festa aparentemente perfeita.

A história descreve a jovem Frida (Naomi Ackie), uma garçonete que frequentemente se sente invisível, tem sua realidade virada de cabeça para baixo quando, em um evento beneficente, o bilionário Slater King (Channing Tatum) lhe dá atenção. O encantador Slater a convida para uma festa em sua ilha particular, onde os excessos de álcool, drogas e comportamento bizarro dominam o ambiente. A ilha, repleta de cobras venenosas e funcionários carrancudos, parece alterar a mente dos convidados, até que um desaparecimento transforma a festa de luxo em um pesadelo inesperado.

Em seu primeiro longa, ela revela uma ótima perspectiva de mulher dentro da direção com sua sensibilidade e conexão. Nas cenas de abuso do longa, a figura feminina não é hiperssexualizada, mas verdadeiramente representada como vítima, através de elementos e jogos de câmera que não expõe seu corpo, mas denunciam o crime. Um olhar muito difícil quando se trata desse tipo de cena, que naturalmente expõe como um segundo abuso.

“Zoë Kravitz criou o conceito, escreveu, ficou obcecada com cada detalhe e dirigiu com uma visão ousada e clara. Fiquei pasma pelo que ela atingiu aqui e mal posso esperar para ver todo mundo descobrir este filme e esta cineasta brilhante“, elogia a cantora Taylor Swift em seu primeiro contato com a obra.

A perspectiva feminina: além da sensibilidade, conexão real

Não se trata apenas de uma questão de sensibilidade feminina. A inclusão das mulheres no audiovisual traz um diferencial estratégico: a capacidade de estabelecer uma conexão verdadeira com o público, o filme “Pisque Duas Vezes” também demostra isso ao tratar uma história complexa, mas com bons vislumbres do olhar feminino, de rivalidade forçada até a segurança uma a outra.

Os comerciais de absorventes, por exemplo, frequentemente retratam situações irreais e desconectadas da realidade vivida por muitas mulheres. O mercado publicitário também começa a reconhecer a importância da representatividade feminina em diferentes setores. Rejane Bicca, diretora de atendimento da O2 Filmes, nota que, embora a resistência ainda exista, é possível ver uma mudança de mentalidade, especialmente ao tentar inserir mulheres em projetos de maior porte, como comerciais de carros, onde antes essa ideia era amplamente recusada.

Disparidade salarial: um reflexo da desigualdade estrutural

Além das questões de representação, a disparidade salarial entre homens e mulheres também é evidente no audiovisual. Dados da Ancine entre 2011 e 2021 revelam que as mulheres no setor ganhavam, em média, R$ 4.433,44 por mês, enquanto os homens recebiam R$ 5.592,58 – mais de mil reais de diferença. Essa desigualdade de remuneração é apenas mais uma das muitas barreiras enfrentadas pelas mulheres em um mercado que, por muito tempo, as tem subestimado.

A inclusão não pode se limitar apenas à base da pirâmide no audiovisual. É essencial que as mudanças se estendam também às lideranças das grandes produtoras e às marcas, que precisam estar dispostas a confiar nas capacidades das mulheres e superar o medo do novo. Rejane Bicca reforça a importância de termos mais mulheres em posições de liderança, algo que, segundo ela, ajudaria a criar um ambiente mais equitativo e inclusivo no setor.

A necessidade de reconhecimento: valorizando a feminilidade no set

A pressão para que as mulheres no audiovisual abandonem sua feminilidade em busca de respeito e reconhecimento é um reflexo claro das normas masculinas que ainda predominam na indústria. Muitas mulheres se veem forçadas a adotar comportamentos “masculinizados” para serem levadas a sério, que pode ser uma problema na hora de manifestar as singularidades próprias do gênero.

Reconhecer que ser mulher não significa precisar negar sua essência é fundamental. A luta pela inclusão no audiovisual não se resume a ocupar posições, mas também a preservar a identidade e as características que tornam as mulheres únicas nesse universo.

O mercado audiovisual brasileiro está passando por uma transformação, mas ainda há um longo caminho a percorrer. As mulheres seguem enfrentando desafios imensos, desde a falta de oportunidades e a disparidade salarial até a resistência em ocupar funções de liderança.

Contudo, a crescente luta por diversidade e a evolução de produções como “Pisque Duas Vezes” são sinais de que, aos poucos, o setor está se tornando mais inclusivo e representativo. A mudança, embora lenta, é possível – e as mulheres do audiovisual estão prontas para conquistar seu espaço de direito.

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