Pedro Almodóvar

Especial | As mães dos filmes de Almodóvar

O diretor espanhol Pedro Almodóvar tornou-se conhecido no cenário cinematográfico internacional pelo filme “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”, em 1988. A História de uma mulher devastada após ser deixada pelo amante, o longa foi aclamado pela crítica. No filme, estabelecem-se claramente as características que mais tarde seriam símbolos do cinema de Almodóvar, como o uso de cores fortes, as personagens femininas resilientes e alusão ao gênero melodrama. No entanto, neste artigo vamos focar, inicialmente, no trabalho do diretor que recebeu mais atenção do público e da crítica foi “Tudo Sobre Minha Mãe”, em 1999. E depois, em seu retorno ao tema, mãe, 21 anos depois com “Mães Paralelas”.

Mas se você chegou até aqui deve ser para entender melhor a relação do diretor com as representações cinematográficas maternas. Pois bem, para chegar lá, primeiro temos que falar sobre os filmes.

Tudo Sobre Minha Mãe

Especial | as mães dos filmes de Almodóvar
Cecília Roth e Antonia San Juan em cena (Foto: Reprodução/Tudo Sobre Minha Mãe)

O longa narra a história de uma enfermeira, Manuela (Cecília Roth), que perde o filho em um acidente de carro e sai à procura de Lola (Toni Cantó), pai ausente, para dar a notícia. Em seu caminho, ela encontra pessoas que fizeram parte de seu passado, como a transexual Agrado (Antonia San Juan), antiga amiga de Lola; e conhece Rosa (Penélope Cruz), uma moça que teve relações com Lola e contraiu o vírus HIV.

Tudo Sobre Minha Mãe apresenta uma releitura da forma clássica do gênero melodrama, apesar de utilizar instrumentos narrativos que lhe são intrínsecos. O melodrama, por muito tempo, sempre foi menosprezado como um gênero popular demais, destinado ao público feminino que frequentava os cinemas à tarde, enquanto os maridos trabalhavam, para fugir da realidade, sonhar – e chorar – um pouco.

Histórias dramáticas, caudalosas, marcadas por reviravoltas por vezes inverossímeis, sempre sob o compasso de trilhas sonoras feitas para emocionar – o tal melos, de melodrama –, essas histórias não eram levadas a sério, salvo por suas fiéis espectadoras. Por baixo do excesso formal, das vastas emoções esparramadas pelas tramas arrebatadas, feitas sob encomenda para emocionar o grande público, havia contundentes comentários sobre a condição da mulher, o patriarcalismo, a distinção entre classes e o racismo.

Embora a cisão maniqueísta entre mocinhos e vilões do melodrama clássico esteja ausente no longa, é fácil perceber como o filme possui uma moral própria, e essa moral parte da uma visão universal da figura mãe para o diretor.

A mãe que assistia na TV agora é estrela de cinema

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Penélope Cruz é a protagonista de Mães Paralelas (Foto: Divulgação/Sony Pictures)

Mesmo espanhol, Almodóvar é bastante querido na América Latina, e existe uma explicação bastante simples para isso: tanto espanhóis, quanto nós, latino-americanos, em grande parte, somos melodramáticos e assistimos novela. Assim como nos identificamos com obras estadunidenses feitas por afro-americanos – devido à dura e simples vida suburbana – esses aspectos culturais de massa geram essa sensação espelhada.

Por isso Almodóvar usa da figura da mãe como esse ponto motriz de identificação. Mais que isso, tira a figura da mãe de uma mera espectadora, para se tornar estrela de seu dramalhão cinematográfico.

Penélope Cruz, a mãe preferida de Almodóvar

A sequência inicial mais bela do cinema de Pedro Almodóvar talvez seja a de “Carne Trêmula”: a prostituta Isabel, vivida por Penélope Cruz, dá à luz Victor – que adiante será um dos protagonistas da trama – em um ônibus que percorre as ruas desertas de Madrid à noite, durante o estado de emergência decretado pelo regime do generalíssimo Francisco Franco, em 1970.

Já em Mães Paralelas, Penélope Cruz, no papel da fotógrafa Janis, de novo aparece no momento do parto – ainda em Madrid, claro, mas em condições mais controladas, em um hospital. Fruto de um caso com um homem casado, a gravidez não foi planejada, mas Janis decidiu que era sua hora de ser mãe. Se em Carne Trêmula Penélope Cruz passava só dez minutos em cena, aqui ela faz a personagem principal. O roteiro parece percorrer o caminho inverso do filme anterior, que logo no início saltava 20 anos da noite franquista para a Espanha democrática.

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Icônica cena de Penélope Cruz em Volver (Foto: Reprodução/Volver)

Em Mães Paralelas, ao contrário, o mergulho no passado autoritário só se realiza integralmente no final, quando Janis recupera a história de seu bisavô, assassinado pelos falangistas de Franco, em 1936, durante a Guerra Civil espanhola.

Evidentemente a Penélope Cruz é uma figura que não pode ser lida como uma mãe tradicional por assim dizer, mas ela representa nos filmes do Almodóvar. essa forma idealizada de mulher que, sei lá, nossas mães queriam ser retratadas no cinema.

Quando ainda era uma menina em Madrid, Penélope Cruz assistia aos filmes de Pedro Almodóvar, esperando que um dia o diretor arrumasse um lugar para ela em seu mundo colorido e ousado. Ela sonhava tanto que, quando ele telefonou pela primeira vez, parecia que os dois já se conheciam. Esse laço foi confirmado mais tarde quando Almodóvar a convidou para uma leitura de cenas em seu apartamento. Penélope, uma atriz novata — era 1992 e os dois primeiros filmes dela, “Jamón Jamón” e “Belle Époque” tinham acabado de sair — sentiu que a conexão entre os dois era natural.

Ao New York Times, Pedro Almodóvar diz que o poder da convicção de Penélope foi a chave da relação dos dois.

“Ela tem uma fé cega em mim. Está convencida de que sou um diretor e um roteirista melhor do que realmente sou. Essa fé me dá confiança para pedir qualquer coisa a ela. Ao mesmo tempo, a confiança que ela tem em mim a permite fazer coisas durante as filmagens que talvez não ousasse com outros diretores. Penélope sabe que a estou observando com mil olhos”.

Mães Paralelas é mais importante do que você imagina

Longe de ser considerado o melhor trabalho de Almodóvar, Mães Paralelas é muito importante para fechar arcos e atualizar diálogos de sua própria filmografia. O cineasta antenado no seu tempo, ainda consegue espaço para falar de política – como feito desde o radical “Que Fiz eu Para Merecer Isto?” – e discursar sobre a condição feminina. Uma estampa de camiseta de Janis conclama: “Deveríamos todos ser feministas”. Temas libertários também brotam, com a breve, mas marcante, participação da trans Daniela Santiago (“Veneno”).

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Milena Smit e Penélope Cruz em Mães Paralelas (Foto: Divulgação/Sony Pictures)

O desapego gradual de um ente querido também dá o filme um forte sustento dramático como visto em “Volver”. Hábil na análise dos registros audiovisuais e fotográficos dos próprios personagens que ele manipula, numa linha que contempla “Abraços Partidos” e “Má Educação”. Almodóvar, em Mães Paralelas, segue dominando o tema uma vez que Janes é fotógrafa e monitora o bebê pelas câmeras. Imagens de um celular, na trama, também criam um enorme suspense.

Para a Variety, o diretor dá o tom e explica seu fascício pelo mundo feminino e, principalmente, pela figura da mãe:

“Com Mães Paralelas eu retorno ao universo feminino, à maternidade, à família. Falo sobre a importância dos ancestrais e dos descendentes. Da inevitavel presença da memória. Há muitas mães em minha filmografia, e as que estarão nessa história são bem diferentes ” […]. “Como roteirista, mães imperfeitas me inspiram mais nesse momento. Vai ser um drama intenso, eu espero”.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.