Review | Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes: Nostálgico e envolvente, mas longe de ser perfeito

Review | Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes: Nostálgico e envolvente, mas longe de ser perfeito

Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes, lançado em 23 de abril de 2024, é o último trabalho de Yoshitaka Murayama (1969-2024), responsável por nada mais, nada menos, que Suikoden I e II, duas das sínteses de qualidade narrativa do gênero JRPG, e de toda indústria de jogos eletrônicos desde a sua concepção, com absoluta certeza. Seu novo estúdio, o Rabbit & Bear Studios, inclusive, era formado por uma equipe que também trabalhou nos clássicos já citados, o que obviamente atraiu ainda mais a atenção dos seus fãs, eu incluso.

Entretanto, sendo um projeto de crowdfunding, é completamente compreensível que se estabeleceu uma certa preocupação sobre a qualidade do mesmo, tendo em vista exemplos decepcionantes com grandes nomes envolvidos, como Mighty No. 9, que resultou na volta do criador de Megaman ser um terrível fiasco, por exemplo. Se não bastasse, nos primeiros trailers, Eiyuden compartilhava, superficialmente, características que me fizeram temer que a jornada dos dois protagonistas seria apenas uma tentativa vazia de reviver a nostalgia e a glória narrativa da trama de Riou e Jowy de Suikoden II. Isso sem falar do meu medo de que a mescla entre sprites 2D e modelos 3D, como alguns exemplos recentes, principalmente JRPGs que apostam no “retrô”, ficasse de uma forma visualmente destoante e incômoda. Mas já posso adiantar, positivamente, pra vocês que isso nada disso ocorreu com o sucessor espiritual de Suikoden.

Infelizmente, o icônico diretor, roteirista e produtor que era Murayama, faleceu um pouco antes do lançamento do jogo, o que faz de Eiyuden Chronicle sua especial despedida.

Review | Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes: Nostálgico e envolvente, mas longe de ser perfeito
(Imagem: Divulgação/Rabbit & Bear Studios)

Obs: Análise realizada com uma cópia cedida pela nossa parceira Nuuvem.

Uma trama política muito bem escrita e humana

A história é situada nas terras de Allran e suas diversas nações, culturas, raças humanoides e embates filosóficos. Aqui, o poderoso império Galdeano e o gênio político militar que o controla, Duque Aldric, orquestra sua desenfreada ambição, trazendo o horror da guerra não só para condados menores, como para todo o mundo. Fato que acaba por envolver nossos três protagonistas: Nowa, um humilde mercenário que busca ajudar quem precisa. Seign, um honrado imperial da elite, fiel ao seus ideais do que é certo e errado. E Marisa, uma guardiã membra de um clã recluso, do qual tanto o império, quanto a resistência, procuram se aliar.

Nesse contexto, Aldric busca liberar, de acordo com sua visão, o potencial oculto das Lentes Rúnicas, a fonte de todo o poder mágico no mundo de Allran. Porém, sob uma ótica distorcida, ele não encontra limites em seus atos, o tornando um perigo potencial para todas as nações. A primeira vítima é o pequeno país de Grum, um dos membros das Liga das Nações, uma delicada aliança formada por países menores para balancear o poder com o já citado império Galdeano. Cabe a Nowa a responsabilidade de erguer, dos destroços da tragédia (lê-se guerra) que assolou Grum, uma resistência contra os atos violentos do duque, em um forte abandonado distante, enquanto minuciosamente e vagarosamente, monta um exército de personagens únicos para se voltar contra as tramóias do vilão.

Isso tudo nas primeiras horas de Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes

(Imagem: Divulgação/Rabbit & Bear Studios)

A ideia de reconstrução e recrutamento de novos “amigos” após uma trágica derrota, abre um leque de interações com os personagens das diversas nações retratadas aqui, e cria um senso de exploração e progressão que, apesar de lento no início, vai, cada vez mais, ser eficaz em te deixar imerso e investido nessa crônica. O que dá a oportunidade de vermos que ela não é só bem escrita em sua história principal, como carrega personagens completamente distintos (e para todos os gostos), que interagem de uma forma muito humana e, impressionantemente, verossímil. E o mais importante, eles não são deixados de lado como meros NPCs ajudantes. Eles tem voz, dão opiniões sobre as diversas viradas na trama, e são bem fiéis ao seus próprios trejeitos no processo, o que é muito legal de observar. É, de longe, o ponto alto de Eiyuden Chronicle, afinal trabalhar um roteiro com tantos personagens, nações e tretas políticas, é por si só algo extremamente difícil, que a Rabbit & Bear Studios foi tão sensacional em construir (agradecimentos ao time de tradução/adaptação ocidental também, não posso esquecer).

Nostálgico e envolvente, mas longe de ser perfeito

Por mais que eu não goste, afinal todos que jogaram os clássicos devem fazer isso, é impossível citar Eiyuden sem citar Suikoden. Mas é claro, suas semelhanças são notáveis, ou melhor, elas são jogadas na nossa cara com uma voadora de dois pés! Veja bem, temos um forte para gerir, mais de 100 personagens para recrutar (sendo mais da metade utilizável em lutas), batalhas táticas de exércitos ao melhor estilo Shining Force, um sistema de combate em turno com seis guerreiros divididos em 2 fileiras (com apoio), e até mesmo o estilo gráfico e sonoro do seu antecessor. É basicamente um Suikoden II, sim, ele foi feito com esse intuito, o que eu entendo como a assinatura do seu criador. Justo, obviamente.

Review | Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes: Nostálgico e envolvente, mas longe de ser perfeito
O “combo de herói” é uma habilidade que pode ser usada com uma dupla da equipe que possui alguma ligação. No caso aqui, temos o exemplo de Nowa e Seign e sua sincera amizade. Além do dano providencial e de animações legais, é mais outra característica herdada de Suikoden (Imagem: Divulgação/Rabbit & Bear Studios)

E ele tem bastante qualidade, não só como antecessor, mas como um um exemplar do gênero JRPG! Então, espere o pacote que algo assim pode proporcionar: com masmorras, minigames, encontros aleatórios pelo mapa e uma jornada que será embalada com os já citados envolventes momentos chave, (sem falar de uma grata liberdade para explorar o mundo!). A dificuldade da jogatina, no normal, é bem balanceada e exige o mínimo de cuidado, apesar das opções hardcore estarem presentes para os mais entusiastas. Os cenários são bem bonitos, na maioria das vezes, e a trilha sonora mantém uma qualidade estável, com uma dezena de melodias marcantes.

Sobre a dublagem, bem, eu joguei a maior parte em japonês, geralmente não gosto do trabalho da americana em JRPGs, e esse não é uma exceção, só pra ressaltar. Como é de esperar, os japoneses mandam bem na dublagem, mas existem personagens, um em específico, cujo a voz quase me fez desligar o console e jamais ligar de novo! Sim, estou falando da Mellore, uma espécie de “guerreira Sailor Moon”, só que versão “em casa”. O negócio é uma tortura. Felizmente, existe uma forma de você jogar com geral no mudo, deixando só a música de fundo, mais uma vez reprisando um conceito clássico de Suikoden (e dos JRPGs dos anos 90).

Eu diria que, tecnicamente, tudo funciona razoavelmente bem, apesar de ser um estúdio novo e o projeto ter um orçamento limitado. Eu fiquei positivamente surpreso com o resultado, e acredito que atualizações irão corrigir algumas instabilidades, como o carregamento demorado de algumas animações enquanto damos seguimento na história. Porém, deixem-me ressaltar a pior decisão da direção desse jogo: colocar a animação dos balões de fala de “empolgação” do nosso elenco exageradamente tremida, para acentuar a sensação de que o personagem realmente está afoito, sabem? O lance é que pra ler nesses momentos é penoso, desnecessário e irritante demais. Eu literalmente olhava pra qualquer lado, menos pra televisão, nesses momentos, enquanto eu jogava.

(Imagem: Divulgação/Rabbit & Bear Studios)

Conclusão

Nessa dinâmica de inúmeras semelhanças entre antecessor e sucessor espiritual, é normal que um ou outro se destaque mais em seus conceitos técnicos. Por exemplo, a trilha sonora sublime de Suikoden ainda permanece superior, mesmo que Eiyuden esteja em um nível bem alto. Entretanto, graficamente, Eyiuden se destaca com animações de sprite incrivelmente mais trabalhadas, tendo a tecnologia ao seu favor. E é divertido demais explorar novos ataques devastadores do elenco só pra ver suas animações em combate. Os detalhes dos sprites são um show a parte pra qualquer admirador também, como a forma que Nowa movimenta sua dupla de ganchos, ou Yusuke com seu sobretudo esvoaçante, que acentuam nossa observação do cuidado dos designers desse jogo. Eu destaco, inclusive, algo que falei no começo do texto, o quanto a mescla do 2D com o 3D ficou natural e não destoante.

Uma coisa a se ressaltar também é que muitas dessas semelhanças de ambas as séries citadas nesse Review são conduzidas de forma diferente. E eu notei que isso incomodou alguns fãs de longa data. Posso citar que o forte de Eiyuden, por exemplo, diferente de Suikoden II, nos é apresentado bem mais rápido durante a trama. O que, acredito eu, se dá por uma decisão de entregar pro público um dos seus grandes chamativos, que é o recrutamento de uma centena de personagens, de forma mais ágil, afinal o pensamento dos fãs do gênero nos anos 90 é totalmente diferente dos de hoje, correto?

Não acredito que o público médio, exceto por alguns fãs mais hardcore, querem um “worldbuilding” de dez horas para finalmente serem introduzidos ao sistema principalmente do marketing do jogo que compraram. O mundo mudou. Talvez, esse “rush” do começo da trama, não só da liberação do forte, mas da construção da amizade de Nowa e Seign, tenha realmente deixado o começo menos interessante do que devia, afinal acontece rápido, sem que criemos uma base afetiva, diferente de Suikoden II. Realmente o contexto dos fatos da trama tem bem menos construção, mas só inicialmente, afinal, como já adiantei pra vocês, a sacada dessa obra é realmente te pegar durante sua trajetória, e eu posso confirmar aqui que ela faz isso muito bem. Porém, eu tenho que admitir que, apesar de muito bem escrito, existe uma ausência de impacto emocional geral na trama, algo que senti falta. Eu acredito que devia ser melhor trabalhado, como seu antecessor espiritual fez. Mas nem de longe isso me incomodou de forma relevante, pois a boa escrita do roteiro compensa seus erros.

No frigir dos ovos, é injusto e sinceramente, uma sacanagem comparar as duas obras, apesar de inevitável. Afinal, Suikoden II é uma obra prima, um acerto difícil de alcançar, e ora, Eiyuden tem seus próprios méritos!

Devo dizer que Nowa é um protagonista padrão de bom coração, até lerdo e irremediavelmente inocente às vezes, como manda o clichê, mas se destaca por suas interações “zoeiras” com algumas situações, algo incomum que me fez gostar bastante dele. E é raro eu gostar assim de protagonistas desse gênero! O vilão Aldric, felizmente, se destaca por estar bem longe de Lucca Blight de Suikoden II em personalidade, nos causando temor, ainda assim, mas de um jeito completamente diferente: contido, elegante, inteligente e ainda assim, maquiavélico.

Concluindo, posso dizer que Eiyuden está, sim, longe de ser perfeito, e realmente está abaixo da grandiosidade de seu antecessor espiritual. Mas isso não diminui em nada o quão bom ele é! Na verdade, os convido a julga-lo por toda a sua, e apenas a sua, totalidade! Você verá que se trata de um jogo “com alma”, muito bem escrito e que entregará dezenas horas de diversão pra qualquer fã de JRPG.

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Escritor freelancer, entusiastas de JRPGs, Fromsoft e jogos de luta. Me sigam no twitter: @infleimes