O livro Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva, é uma obra que toca fundo no leitor, ao nos conduzir pelos labirintos da memória, da dor e da resistência. Embora o filme homônimo, lançado em 2023, tenha se tornado um grande sucesso de público e ajudado a alavancar as vendas do livro, é importante destacar que a versão cinematográfica, embora muito fiel à essência do livro, fez escolhas de adaptação que alteraram o foco de certos aspectos da obra, especialmente no que se refere à figura de Eunice Paiva, mãe de Marcelo, e seu papel como advogada.
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O livro de Marcelo, lançado em 2015, é uma narrativa marcada pela dor, mas também pela força de uma mãe que, após perder o marido Rubens Paiva, um ex-deputado sequestrado, torturado e assassinado pela ditadura militar em 1971, se reinventa como uma defensora incansável da verdade. A obra não segue uma cronologia rígida, e isso serve como um reflexo das próprias lacunas da memória, não apenas da família Paiva, mas também da sociedade brasileira que, por muito tempo, se omitiu ou tentou apagar a brutalidade do regime militar.
A escrita de Paiva é imersiva e caleidoscópica, marcada pela alternância entre o presente de sua mãe, que sofre os efeitos do Alzheimer, e os momentos de infância e juventude em que ele viveu as dores de uma ausência eterna: a do pai. O autor não recorre ao melodrama, mas sim à crueza de sua realidade e à indiferença com que a dor da perda de um ente querido foi tratada pelo regime ditatorial. No entanto, o destaque do livro vai muito além da memória do pai perdido — ele é, sobretudo, um retrato de Eunice Paiva, a mãe, uma mulher que, diante da tragédia, precisou se reinventar para sobreviver.
Se por um lado o filme conseguiu capturar a essência do sofrimento de Eunice e seu papel fundamental na luta pela justiça, a obra literária mergulha mais fundo em sua trajetória, principalmente no que se refere à sua atuação como advogada. No livro, Eunice não é apenas a mãe que busca incansavelmente respostas sobre o destino do marido, mas também uma mulher pragmática, que se reinventa profissionalmente após o desaparecimento de Rubens. A obra revela que ela se formou advogada e se dedicou à defesa dos direitos humanos, tornando-se uma figura central na luta por justiça para seu marido e para os milhares de outros desaparecidos durante o regime militar. Esse recorte da vida de Eunice, mais detalhado no livro, destaca não apenas a sua coragem, mas também a dor profunda de uma mulher que, além de lutar por uma verdade histórica, tem que lidar com a ausência de seu companheiro e com a desconstrução de suas próprias memórias, agora fragmentadas pelo Alzheimer.
A adaptação para o cinema se concentra mais na parte emocional da história, no impacto do desaparecimento de Rubens na vida dos filhos e na transformação de Eunice, mas não dedica tanto tempo a explorar a trajetória da mãe como advogada, nem a profundidade da luta dela na defesa dos direitos humanos. No filme, Eunice aparece principalmente como uma mãe sofrida, mas no livro ela é também uma mulher política, ativa e combativa, que não se limita ao sofrimento pessoal, mas busca incansavelmente justiça para a família e para outros brasileiros vítimas da ditadura.
Outra diferença importante entre o livro e o filme é o tratamento da memória e do tempo. No livro, Paiva explora com mais intensidade o efeito devastador do Alzheimer na mãe, a perda progressiva da memória e a desconexão da história. A narrativa não segue uma linha do tempo clara, justamente para representar essa fragmentação da memória e a dificuldade de se conectar com o passado. O autor se permite oscilar entre diferentes momentos da sua vida e do país, criando uma sensação de descontinuidade, que reflete a falta de fechamento sobre o que aconteceu com seu pai. No filme, a linha do tempo é um pouco mais linear, e a narrativa segue uma estrutura mais convencional, o que facilita o acompanhamento da trama, mas também diminui a complexidade da questão da memória e do esquecimento que o livro aborda com tanta profundidade.
O impacto emocional do livro também está na forma como o autor nos faz refletir sobre o lugar do esquecimento na história. Não só sobre a falta de memória das vítimas, mas também sobre o silêncio e a omissão da sociedade diante dos crimes cometidos pela ditadura. Em uma das passagens mais poderosas, ele descreve o quartel da Polícia do Exército onde Rubens Paiva foi torturado e desapareceu. A figura de uma estátua erguida em sua homenagem, de costas para o quartel, se torna um símbolo poderoso da resistência contra o esquecimento. O autor nos faz questionar: até quando o Brasil continuará ignorando ou silenciando sobre o que realmente aconteceu durante a ditadura? A estátua de Rubens Paiva, que não olha para o quartel, mas sim para o horizonte, se torna um convite para a reflexão, para a preservação da memória e para o enfrentamento das feridas históricas que ainda não foram curadas.

O filme, por sua vez, também destaca essa reflexão, mas de maneira mais sintética. Ele opta por um olhar mais centrado na dor e na resistência pessoal de Marcelo e de sua mãe, e o elemento político da obra, embora presente, se dilui um pouco na busca emocional por respostas. No entanto, não se pode negar que a adaptação para o cinema conseguiu transmitir a complexidade emocional do livro, tornando o sofrimento da família Paiva acessível a um público mais amplo.
Marcelo Rubens Paiva, como autor, tem uma habilidade única de transformar a dor pessoal em uma reflexão coletiva. Ele não escreve apenas sobre a tragédia de sua família, mas sobre a tragédia de uma nação, e o impacto da ditadura militar na construção da identidade brasileira. Em Ainda Estou Aqui, ele nos convida a pensar sobre a história e sobre como lidamos com o passado. O livro, ao contrário de muitos relatos de sobreviventes da ditadura, não busca heróis ou vilões. Ele busca humanidade, e é nisso que reside sua grandeza: ele nos lembra que, apesar de todas as atrocidades cometidas, há sempre espaço para a resistência, para a luta pela verdade, e para a preservação da memória.

Ao fechar o livro, nós, enquanto leitores, nos deparamos com uma sensação ambígua de perda e de luta contínua. O desaparecimento de Rubens Paiva, embora finalmente reconhecido pela Comissão Nacional da Verdade, não traz a justiça que muitos esperavam. A verdade chega tarde demais, e ainda assim, a luta pela memória permanece, incessante. Marcelo Rubens Paiva nos ensina, assim, que a memória não se trata apenas de recordar o passado, mas de garantir que ele nunca seja esquecido. Esse é o legado de sua obra: um convite à resistência contra o esquecimento e à luta pela verdade, não apenas para os que foram vítimas da ditadura, mas para todos nós.
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