É irônico um herói cego enxergar com mais clareza os dilemas de sua própria identidade do que a série que o revive. Demolidor: Renascido é um paradoxo em formato de série: uma produção que tenta honrar o passado sombrio do Demolidor da Netflix enquanto se ajusta – nem sempre com sucesso – ao universo colorido e interconectado do Universo Cinematográfico Marvel (MCU). O resultado é uma temporada que oscila entre momentos “menores” episódicos e um arco principal que, como o próprio Matt Murdock, parece hesitar entre dois mundos.
Logo no primeiro episódio, a série faz uma jogada arriscada: afasta Karen Page (Deborah Ann Woll) e Foggy Nelson (Elden Henson), os pilares emocionais da série original, em cenas rápidas e dolorosas. Essa decisão, embora narrativamente ousada, cria um vácuo que Renascido nunca consegue preencher por completo. A química entre Matt, Foggy e Karen era o coração da série anterior, e sua ausência é sentida em cada cena de tribunal ou momento de dúvida do protagonista. A tentativa de substituí-los por novos rostos – como a parceira jurídica Kirsten McDuffie (Nikki M. James) e a interesse amoroso Heather Glenn (Margarita Levieva) – não surte o mesmo efeito, pois faltam tempo e profundidade para que essas relações ecoem com a mesma intensidade.
No entanto, há uma intenção clara aqui: Renascido quer ser um novo começo, não apenas uma continuação. O problema é que, ao mesmo tempo que apaga personagens icônicos, a série ainda se apoia fortemente no tom e na estética da produção da Netflix. A fotografia sombria, os combates brutais e a exploração da culpa católica – embora, todos esses elementos não tenham sido executados decentemente – de Matt Murdock são heranças diretas da primeira versão. Essa dualidade – querer se libertar do passado sem abandoná-lo – é o maior conflito da série, e nem sempre ela lida bem com isso.
O arco principal de Renascido gira em torno da tentativa de Matt e Wilson Fisk de deixarem suas personas para trás. Matt jura abandonar o manto do Demolidor; Fisk, agora prefeito, afirma que renunciou o alter ego de Rei do Crime. A premissa é fascinante, pois coloca os dois em espelho: ambos acreditam que podem mudar o sistema por dentro, mas são inevitavelmente puxados de volta à violência que os define.

Charlie Cox, é claro, carrega a série nos ombros. Seu Matt Murdock é uma figura tragicamente carismática – um homem dividido entre a fé na justiça e a certeza de que, às vezes, só os punhos resolvem. A direção sabe aproveitar seu talento, especialmente em cenas de ação, onde a coreografia mistura brutalidade e fluidez. Uma sequência em particular, no quinto episódio, é digna de elogios: um plano-sequência em um prédio abandonado, onde a câmera acompanha Matt sem cortes, alternando entre escuridão e luzes de emergência, enquanto ele desvia de balas e enfrenta capangas. A falta de música nessa cena, substituída apenas pelo som da respiração ofegante e dos ossos quebrando, é um lembrete do que essa série faz de melhor.
Já Fisk, infelizmente, não tem a mesma sorte. Vincent D’Onofrio continua sendo um ator magnético, mas seu personagem aqui parece preso em um loop de ameaças rasas e discursos sobre poder. Suas cenas com Vanessa, antes cheias de tensão sexual e perigo, agora soam como paródias de “O Poderoso Chefão”. A subtileza da série original se perde em diálogos expositivos e tramas secundárias que não evoluem. Pior ainda: quando Fisk finalmente assume o controle da cidade nos episódios finais, o roteiro opta por um tom quase caricato, com o Rei do Crime agindo como um ditador de quadrinhos dos anos 90. Essa mudança abrupta – do crime organizado realista para o vilão megalomaníaco – quebra a imersão, especialmente para quem acompanhou o Fisk meticuloso da versão Netflix.
O problema do ritmo
Renascido é uma série de contrastes também em sua estrutura. Enquanto episódios como o terceiro (focado no julgamento de Hector Ayala) e o quinto (o já mencionado one-shot do assalto ao banco) funcionam como histórias autônomas e bem resolvidas, a trama principal parece correr contra o relógio nos dois últimos capítulos. O confronto entre Matt e Fisk, que deveria ser o ápice da temporada, é tratado com pressa, mais como um prelúdio para uma próxima fase do que um fechamento satisfatório. O arco do serial killer Muso, por exemplo, tem um potencial macabro incrível (suas cenas são algumas das mais perturbadoras do MCU), mas é assustadoramente interrompido, deixando a sensação de que faltou desenvolvimento.
- Leia também: Demolidor: Renascido | Serial killer ou artista? Conheça Muso, o macabro vilão da nova série
E aqui chegamos a outro dilema: Demolidor: Renascido é, oficialmente, parte do MCU. Isso traz implicações complicadas. Se Wilson Fisk agora controla Nova York de forma tão descarada, onde estão os Vingadores? O Homem-Aranha? A série tenta justificar isso com um diálogo vago sobre “heróis estarem ocupados em outros lugares”, mas soa como um remendo frágil. O tom sombrio e violento da antiga série sempre foi um contraponto ao mundo colorido da Marvel, e integrá-lo de vez a esse universo pode diluir o que o torna especial.
Um renascimento inacabado

Demolidor: Renascido é como seu protagonista: cheio de boas intenções, mas ainda tropeçando no escuro. Há ali uma série excelente tentando sair – visível nos momentos de ação crua, no desempenho de Cox, nas histórias laterais bem construídas –, mas ela ainda não encontrou seu equilíbrio entre o legado da Netflix e as demandas do MCU.
Matt Murdock passa a temporada inteira questionando se pode ser um herói sem o manto. Renascido, da mesma forma, parece se perguntar: “Posso ser Demolidor sem ser a série de antes?” A resposta, por enquanto, é um talvez.
Os episódios novos da 1ª temporada de Demolidor: Renascido são lançados todas as terças-feiras, exclusivamente no Disney+.
Leia as críticas individuais dos episódios da temporada:
- Primeiras Impressões | Demolidor: Renascido
- Crítica | Demolidor: Renascido – 1×3: Justiça sem máscara, heróis sem paz
- Crítica | Demolidor: Renascido – 1×4: Justiça, sistema e a sombra do Justiceiro
- Crítica | Demolidor: Renascido – 1×5: Um herói sem capa, mas não sem causa
- Crítica | Demolidor: Renascido – 1×6: Quando os demônios voltam à tona
- Crítica | Demolidor: Renascido – 1×7: Arte sangrenta, conclusão rasteira
- Crítica | Demolidor: Renascido – 1×8: O baile das máscaras e a dança do caos
- Crítica | Demolidor: Renascido – 1×9: Fisk no poder, Matt na resistência em final anticlimático
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