Crítica | adaptação de 'O Eternauta' é competente, mas perde sua alma coletiva
Netflix/Divulgação

Crítica | Adaptação de ‘O Eternauta’ é competente, mas perde sua alma coletiva

A arte tem o poder de transcender seu tempo e se tornar um símbolo de luta. O Eternauta, a célebre obra de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López, é um desses casos em que a ficção científica se transforma em metáfora política. Criada em 1957, a história de uma invasão alienígena em Buenos Aires foi lida como uma alegoria da opressão e da resistência coletiva, ganhando ainda mais força durante a ditadura militar argentina (1976-1983), quando Oesterheld, perseguido e desaparecido pelo regime, se tornou um mártir de sua própria narrativa. Agora, em 2025, a Netflix tenta adaptar essa obra-prima para as telas em uma série homônima dirigida por Bruno Stagnaro. O resultado? Uma produção tecnicamente competente, mas que falha em capturar a alma revolucionária do material original.

A série chega com o maior orçamento já visto em uma produção argentina, um elenco estrelado (com Ricardo Darín no papel de Juan Salvo) e a ambição de ser um marco para a ficção científica latino-americana. Em termos visuais, cumpre parte da promessa: a fotografia de Lucio Bonelli é um dos destaques, usando tons frios e saturados para criar um clima de desolação. A neve tóxica, elemento central da história, é retratada com um realismo perturbador, e algumas sequências — como um plano-sequência no 2º episódio que lembra o cinema de Alfonso Cuarón — mostram que há talento técnico por trás da produção.

No entanto, beleza estética não basta quando se lida com uma obra tão carregada de significado. O grande problema de O Eternauta está em sua abordagem narrativa. Na HQ, a força da história vinha justamente do conceito do “herói coletivo”. Juan Salvo não agia sozinho; ele era parte de um grupo de sobreviventes que, juntos, enfrentavam a invasão. Essa ideia era uma metáfora direta da resistência popular contra a ditadura — uma mensagem que a série, infelizmente, dilui ao transformar Salvo em um protagonista solitário, quase um “escolhido”.

Crítica | adaptação de 'O Eternauta' é competente, mas perde sua alma coletiva
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A decisão de centrar a trama em um único herói não é apenas uma mudança narrativa; é uma escolha ideológica. Ao individualizar a luta, a série perde a potência política que fez da obra original um símbolo. Em vez de um grupo de pessoas comuns unidas pela sobrevivência, temos um líder carismático cercado por coadjuvantes mal desenvolvidos. Personagens que, na HQ, tinham peso emocional — como Elena, a esposa de Salvo, ou Favalli, o cientista — viram meros figurantes. Até mesmo os vilões, que no quadrinho eram forças quase abstratas (os misteriosos “Ellos”), ganham uma representação genérica.

A trilha sonora, composta por Sebastián Escofet, reforça essa sensação de “produto globalizado”. Embora eficaz em criar tensão, ela segue fórmulas do cinema de ação norte-americano, sem a identidade sonora que poderia evocar a melancolia e o desespero de uma Buenos Aires sitiada. É como se a série tivesse medo de ser demasiado argentina, optando por um estilo que agradasse ao algoritmo da Netflix.

Uma das maiores frustrações está na ausência de Oesterheld como personagem. Na HQ, o autor aparecia como narrador, inserindo-se na própria ficção e borrando os limites entre realidade e fantasia. Essa camada meta-narrativa dava um peso autobiográfico à história, reforçando seu caráter de denúncia. Na série, essa dimensão desaparece, e com ela, parte da força crítica da obra.

Outro problema é o ritmo. Os três primeiros episódios são inconsistentes: o primeiro tem cenas que beiram o amadorismo, o segundo melhora com uma sequência de ação bem coreografada, e o terceiro empaca em diálogos expositivos. Só no quarto episódio a narrativa parece encontrar seu tom, mas, para uma série de apenas seis capítulos, é tarde demais. A montagem, que poderia ter usado cortes bruscos e não-lineares para reproduzir o caos da invasão, opta por um estilo convencional, sem riscos.

Vale lembrar que a obra original foi publicado como um periódico, logo, uma adaptação sobre o formato também seria não só essencial, mas obrigatória. Curiosamente, o que mais atrapalhou não foi ninguém da equipe criativa, mas sim a própria Netflix que, com seu formato de lançar todos os seis episódios de uma vez, acabou com a possibilidade de criar expectativas para os ganchos aos fins dos episódios ou alimentar teorias de fãs do gênero, caso fosse lançado semanalmente.

Crítica | adaptação de 'O Eternauta' é competente, mas perde sua alma coletiva
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Adaptar uma obra tão icônica sempre será um desafio. O Eternauta não é apenas uma história de ficção científica; é um manifesto político. A série, no entanto, parece mais interessada em cumprir as expectativas do mercado do que em honrar esse legado. Cenas que deveriam ser tensas são substituídas por explosões e perseguições. Momentos de reflexão coletiva — como a cena clássica em que os personagens discutem se vale a pena lutar — são reduzidos a monólogos de Darín.

Alguns fãs argumentam que a série “prepara o terreno” para uma 2ª temporada mais fiel. Mas essa justificativa não se sustenta. Uma adaptação não pode depender de uma continuação para fazer sentido; precisa se manter de pé sozinha. E O Eternauta, definitivamente, não consegue.

O Eternauta poderia ter sido um marco da cultura latino-americana acaba sendo mais um produto da indústria do streaming, o “The Last of Us de hablha”. A série tem méritos técnicos, mas peca onde mais importa: na alma. O Eternauta original era sobre resistência coletiva, sobre pessoas comuns enfrentando o impossível. A adaptação da Netflix transforma isso em mais uma história de um herói solitário.

Oesterheld acreditava que a ficção científica poderia ser um instrumento de mudança. Sua obra resistiu à censura, à ditadura e ao tempo. Infelizmente, essa adaptação não carrega a mesma chama. É uma série que enterra o passado sob camadas de espetáculo, deixando para trás justamente o que fez de O Eternauta uma lenda: sua capacidade de falar sobre o presente, mesmo quando conta uma história do futuro.

Todos os episódios da 1ª temporada de O Eternauta estão disponíveis na Netflix.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.