Depois de uma série de histórias notavelmente fortes – incluindo o sublime terror folclórico da semana passada “73 Jardas” – parecia que a bolha de Doctor Who finalmente havia estourado. Porque o episódio desta semana, “Ponto e Bolha”, caminhava por um trilho que parecia ser a primeira aventura fraca da era Ncuti Gatwa. Felizmente, eu estava errado.
Uma sátira de mídia social dramaticamente inerte e confusa, construída em torno de uma reviravolta chocante sobre o racismo escrita por Russell T Davies, foi ambientada no planeta Tempo Bom – que usa como slogan: “onde tudo está bem o tempo todo”. Neste contexto, os habitantes são inteiramente dependentes da “Bolha”, uma tecnologia de mídia social tão abrangente que sua interface literalmente envolve a cabeça do usuário com telas holográficas brilhantes.
Se isso parece familiar, é porque parece ser um pastiche do episódio “Queda Livre” de “Black Mirror”, que também se passa em um mundo em tons pastéis governado pelas mídias sociais. Davies é um escritor experiente no Zeitgeist, então é claro que ele se inspirou na antologia sombria de Charlie Brooker (“O Mundo por Philomena Cunk”).
Doctor (Gatwa) e Ruby (Millie Gibson) de ficam em segundo plano esta semana. Em vez disso, a improvável protagonista é Lindy Pepper-Bean (Callie Cooke). Ela é uma jovem adulta rica, mimada e vazia que, assim como todos os outros no Tempo Bom, está tão absorta na bolha que não percebe as enormes lesmas mutantes comendo lentamente todos ao seu redor.
As pistas falsas
Sim, estamos todos dependentes em nossos smartphones. Sim, tendemos a cair em bolhas online. Sim, podemos ficar tão envolvidos nas redes sociais que perdemos de vista o mundo real. Mas não é exatamente inovador apontar isso. No episódio há diversão em seus elementos mais caricaturais – Lindy literalmente não consegue andar sem que a bolha lhe diga para onde ir. Ponto e Bolha parecia ser muito superficial em sua execução e vago demais em seu propósito para ser considerado sequer uma sátira. Mas é na reviravolta final que entendemos que, na verdade, Davies estava falando de outro assunto.
Desde as primeiras cenas de Ponto e Bolha somos apresentado a uma série de referências consideradas de “cultura branca”. Toda essa ideia plástica da estética, todos os amigos da timeline da Bolha da Lindy não são só brancos, mas visualmente caucasianos. Não vemos sequer pessoas asiáticas ou latinos de pele clara; Quando o Doutor aparece oferecendo ajuda, ela o bloqueia sem pestanejar, mas quando a Ruby faz o mesmo, ela aceita.
O texto de Davies é brilhante e faz habilmente o trabalho de por na boca de Lindy algumas micro agressões da protagonista do episódio para o Doutor. A revelação é ótima, mas nos faz refletir sobre como o racismo estrutural é forte e do quanto estamos cegos socialmente sobre isso. E essa cegueira nada tem a ver com nossos smartphones.
Se o texto é bom, Callie Cooke é quem sustenta ele. Com apenas um episódio, sua personagem certamente já entrou na lista de um dos mais odiosos de toda a série – e olha que estamos falando de um show que tem ditadores e genocidas entre os vilões. Ela faz o trabalho incrivelmente odioso enquanto uma patricinha fútil, mas o que realmente dá um destaque especial para sua interpretação são nesses momentos em que a personagem escancara todo seu racismo. São olhares e micro expressões faciais odiosas para o Doutor, o único não-branco do episódio. Isso sem falar o que ela fez com Ricky September (Tom Rhys Harries).
Nada disso importa
Embora o roteiro tenha sido escrito para uma reviravolta, evidentemente deve existir um desenvolvimento no meio e um mostro para ser um episódio de Doctor Who. É muito curioso que tudo isso também é interessante e nada jogado, embora depois eu tenha percebido que essas discussões de plano de fundo são distrações para sermos pegos de surpresa no final do episódio.
Existe um comentário interessante sobre September, um cara que só parece superficial porque ele entende como funciona os algoritmos, mas na verdade, prefere viver no mundo real. Ele morreu antes da gente saber se ele era ou não – possivelmente era – racista; bem como a série voltando a citar Inteligências Artificiais (IAs) no modus operandi em que as pessoas em Tempo Bom são mortas. Confesso que, até entender o todo, achei que os temas debatidos não contavam nada que já não tínhamos visto de forma mais efetiva em outras obras nos últimos anos. Por sorte, o ouro estava no fim do caminho.
Só agora ele sabe o que é ser negro
Com o Doutor sendo interpretado por um ator negro pela primeira vez, isso iria surgir em algum momento. Alguns ficaram surpresos por isso não ter surgido em relação ao cenário de “O Som do Diabo“, nos anos 1960. Essa teria sido a opção óbvia – e talvez a mais fácil. Em vez disso, o primeiro envolvimento real da era Gatwa com o racismo ocorre num cenário de futuro distante tecnologicamente avançado. O Doutor vem a este mundo para ajudar, resolve o mistério e se oferece para tirar todos de lá, mas é rejeitado por causa da cor da sua pele.
Doctor Who é, historicamente, uma série bastante progressiva. No entanto, foram 55 anos para a primeira mulher se interpretar o personagem, e 60 para um negro. Gatwa é um excelente ator, que vem provando semanalmente isso. Os minutos finais do episódio só reforçam minha afirmação. Essa não foi a primeira vez que o Doutor se depara com racistas, mas é a primeira vez que ele sofre racismo. Existe uma diferença muito grande em sentir empatia e ser vítima de uma violência. Para quem é negro – incluindo que vos escreve – costuma entender o peso da raça no primeiro trauma causado por conta do racismo. Assistir a reação do Doutor, com lágrimas de ódio, foi como rever algumas situações que vivi enquanto uma pessoa preta que frequenta espaços majoritariamente ocupados por pessoas brancas.
O racismo é estúpido e vai te matar
Muitas obras da cultura pop, sobretudo quando são escritas por pessoas que não compõe nenhuma minoria racial, costuma passar a mensagem que “racismo é ruim” e não fazer questão de ampliar o debate sobre o tema. Embora Davies seja um homem branco, ele entende que discussões sobre racismo, às vezes, devem ser desconfortáveis.
Todo o ato final de Ponto e Bolha é cruel, aliás, a direção de Dylan Holmes Williams (“Servant”), que já havia feito um ótimo trabalho em 73 Jardas, foi precisa, sobretudo na cena final. Os cortas para a cara de nojo de Lindy para o Doutor, que, por sua vez, está chorando pela violência que sofreu e por não pode-los salvar por causa da estupidez que é ser racista.
Ponto e Bolha pode ser até lido como Doctor Who numa roupagem Black Mirror, mas existe muito mais que uma reviravolta cruel e niilista. Davies mostra que existem pessoas ruins, mas vai além ao explicitar que quem tem culpa por criar pessoas assim são os algoritmos, que comprovadamente são racistas. Pessoas jovens – lembre-se que quem vive em Tempo Bom são pessoas de 17 até 27 anos – que são as que mais vivem imersas nas redes sociais, usando filtros irreais, estão mais suscetíveis a propagar o pensamento da supremacia branca criadas por empresas de tecnologia, e Doctor Who é uma série consumida por jovens. Esse tipo de reflexão é propositalmente indigesta, mas inevitável.
Leia as críticas dos episódios anteriores:
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