Há um tipo específico de solidão que só quem viajou pelo tempo conhece. Não é apenas a saudade de lugares distantes ou a falta de aventura — é a dificuldade de voltar a um mundo que parece ter encolhido. Esse é o sentimento que define “Dia de Sorte”, quarto episódio da 2ª temporada da era de Ncuti Gatwa em Doctor Who. Enquanto a série normalmente nos leva a planetas distantes e confrontos cósmicos, desta vez ela faz uma escolha mais ousada: ficar na Terra, em um presente quase banal, para mostrar que as ameaças mais assustadoras nem sempre vêm do espaço.
Ruby Sunday (Millie Gibson), ex-companheira do Doutor, está tentando se adaptar à vida comum depois de deixar a TARDIS. O episódio poderia ter explorado apenas esse luto — algo que a série já fez com maestria em histórias como “Doomsday” ou “The Angels Take Manhattan”—mas vai além. Escrito por Pete McTighe e dirigido por Peter Hoar, Dia de Sorte transforma o retorno de Ruby em uma metáfora sobre manipulação e os perigos da desinformação.
Tudo começa com um flashback: em 2007, o Doutor, perdido no tempo, cruza com um garotinho chamado Conrad e lhe dá uma moeda, dizendo que aquele é seu “dia de sorte”. Anos depois, esse mesmo garoto — agora um adulto interpretado por Jonah Hauer-King — reaparece na vida de Ruby como um podcaster carismático. A princípio, ele parece apenas um homem desajeitado e adorável, mas o episódio não esconde suas intenções por muito tempo. Conrad é, na verdade, o líder de um grupo de ódio online que nega a existência de alienígenas e ataca a UNIT.
A direção de Hoar constrói esse relacionamento falso com um cuidado quase cruel. As primeiras cenas entre Ruby e Conrad são filmadas com uma luz quente, closes que simulam intimidade, e uma trilha sonora suave que lembra os romances clichês de cinema. É um jogo visual e auditivo que nos faz querer acreditar no que vemos — assim como Ruby. O problema é que o episódio demora demais para revelar o que já é óbvio: Conrad não é quem diz ser. Quando a virada finalmente acontece, ela não surpreende; só confirma o que já suspeitávamos.

Ainda assim, há algo interessante nessa escolha narrativa. Conrad não é um vilão grandioso, um Daleks ou um Mestre. Ele é um homem medíocre que encontrou no ódio uma forma de se sentir importante. Sua crueldade não vem de um plano genial, mas de insegurança e vaidade. Quando ele ridiculariza Ruby, chamando suas histórias de “loucura”, ou quando zomba da agente Shirley (Ruth Madeley), o episódio expõe um mecanismo perverso que conhecemos bem: a desumanização como esporte.
E é aqui que Dia de Sorte encontra sua força. Enquanto Doctor Who normalmente coloca o Doutor como o farol da razão contra ameaças sobrenaturais, desta vez ele está praticamente ausente. Ruby precisa lidar com tudo sozinha. A UNIT, liderada por Kate Stewart (Jenna Redgrave), tenta ajudar, mas também falha — e, em um momento moralmente perturbador, Kate autoriza o uso de uma criatura alienígena capturada como arma contra Conrad. É uma cena que levanta questões éticas complicadas: até que ponto podemos combater o ódio sem nos tornarmos tão perigosos quanto ele?

Essa ambiguidade é um dos aspectos mais maduros do episódio, mas infelizmente não é explorada com a profundidade que merecia. O roteiro oscila entre momentos sutis e outros excessivamente didáticos. O discurso final do Doutor sobre radicalização, por exemplo, soa mais como um alerta de serviço público do que como algo que o personagem diria naturalmente. Gatwa, normalmente tão carismático, parece limitado pelo texto — uma pena, já que sua versão do Doutor costuma equilibrar humor e gravidade com perfeição.
Mas se o vilão é fraco e a mensagem às vezes óbvia, por que Dia de Sorte ainda funciona? A resposta está em Ruby. Millie Gibson entrega uma performance emocionante, especialmente nas cenas em que ela percebe que nunca mais conseguirá se encaixar no mundo comum. Sua expressão ao ouvir Conrad dizer que ela “precisa de ajuda” é devastadora — é o olhar de quem sabe que, depois de ver o universo, nada mais será como antes. Nem sempre tão explorada, a vida pós-TARDIS nos lembra muito o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) de saldados sofrem depois de experiências em campo de batalha.

E talvez essa seja a verdade mais dura do episódio. Ruby não está apenas lidando com um namorado mentiroso ou um grupo de ódio — ela está enfrentando a impossibilidade de voltar a ser quem era antes da TARDIS. Sua família, interpretada com carisma por Carla, Cherry e Louise, tenta ajudá-la, mas não entende o que ela viveu. É uma solidão que vai além da traição de Conrad.
Quando Ruby volta para casa e é abraçada por quem a ama, há um alívio — mas também uma pergunta que fica no ar: em um mundo onde até o afeto pode ser uma armadilha, como seguir em frente? Doctor Who não responde essa pergunta, mas deixa claro que, por mais que as estrelas chamem, é na Terra que as batalhas mais difíceis são travadas. E, às vezes, sorte mesmo é ter quem nos espere quando a aventura acaba.
Os episódios novos da 2ª temporada de Doctor Who são lançados aos sábados, exclusivamente no Disney+.
Leia sobre os episódios anteriores:
Deixe uma resposta