Há uma cena emblemática em “Mundo do Desejo” onde pilhas de canecas quebrada se acumulam nos cantos de uma cozinha impecável — um detalhe em meio à falsa perfeição de um mundo distópico que se apresenta como utopia. Essa imagem funciona como metáfora para o próprio episódio: uma construção narrativa que ostenta brilho superficial enquanto rachaduras estruturais se tornam impossíveis de ignorar. Russell T Davies, em sua assinatura característica comandando Doctor Who, não apenas reconhece essas fraturas como as incorpora intencionalmente na narrativa, transformando falhas potenciais em comentários sobre a natureza da realidade e do poder.
O universo alternativo criado pela Rani (Archie Panjabi) é uma sátira que extrapola a simples paródia de valores conservadores. Ao colocar Conrad (Jonah Hauer-King) — um homem medíocre com ressentimentos típicos da cultura de internet — como arquiteto dessa realidade distorcida, a história expõe o mecanismo pelo qual ideologias opressivas se perpetuam: não através de força bruta, mas da banalização do absurdo. Os cidadãos desse mundo aceitam gigantes esqueléticos e torres de ossos flutuantes com a mesma naturalidade com que ignoram pilhas de louça quebrada, num paralelo perturbadoramente familiar com nossa capacidade coletiva de normalizar contradições sociais.

Ncuti Gatwa oferece aqui uma das performances mais interessantes de seu Doutor até agora, especialmente nos momentos em que John Smith – sua persona domesticada — começa a despertar. Há uma vulnerabilidade genuína em como ele retrata a resistência interna contra a conformidade, um conflito que ecoa além da ficção científica. Millie Gibson, como Ruby, continua sendo o elemento humano mais convincente da temporada, sua jornada de desconfiança para ação servindo como contraponto necessário ao excesso cósmico que a rodeia.
A direção de arte merece reconhecimento especial por criar um ambiente que é simultaneamente convidativo e opressivo. As cores pastel e iluminação dourada dos interiores dos anos 1950 contrastam deliberadamente com a paleta sombria do mundo exterior, enquanto a trilha sonora de Murray Gold oscila entre melodias nostálgicas e harmonias dissonantes que prenunciam o colapso iminente. Tecnicamente, é uma realização impressionante, especialmente considerando as limitações orçamentárias para uma ideia tão megalomaníaca.
No entanto, o episódio sofre do que poderíamos chamar de “Síndrome RTD”: uma tendência a sacrificar coerência narrativa em prol de momentos emocionais individuais. A revelação tardia de Omega como força motriz por trás dos eventos, por exemplo, parece menos uma revolução narrativa e mais uma jogada para agradar fãs antigos, comprometendo a construção cuidadosa da ameaça representada por Rani e Conrad. Da mesma forma, a resistência liderada por Shirley (Ruth Madeley) — conceito brilhante em teoria — acaba subutilizada, suas implicações políticas reduzidas a breves momentos de discurso em vez de ação orgânica.

O que permanece fascinante em Mundo do Desejo, apesar dessas contradições, é como Davies usa a linguagem do caos para falar sobre ordem. Cada elemento desequilibrado — desde a atuação teatral de Panjabi como Rani, lembrando, de certa forma, a atuação de vilões da era clássica da série, até os excessos visuais do clímax — reflete propositalmente o tema de um universo cujas fundações estão desmoronando. Não por acaso, o episódio termina não com resolução, mas com colapso: prédios desabando, personagens gritando, e a promessa de que na próxima semana tudo ficará pior.
Talvez o maior trunfo do episódio até aqui — levando em consideração que essa é apenas uma parte —seja o abraçar ao grandioso, o exagerado, sem buscar emular a solenidade de filmes de super-heróis ou o realismo sombrio de distopias, que muitas propriedades intelectuais que a Disney financia, acabam indo. Mundo do Desejo e essa temporada de Doctor Who permanece comprometido com a ideia de que o universo é, fundamentalmente, absurdo — e que nossa única resposta possível diante desse absurdo é continuar questionando, mesmo quando as respostas se mostram insatisfatórias. Esse até pode não ser o episódio mais polido da temporada, mas talvez seja um dos mais verdadeiros ao espírito da série: uma celebração desesperada da curiosidade humana em face da desordem cósmica.
O verdadeiro teste será ver se o final da temporada consegue transformar essa desordem em significado –— ou se, como as pilhas de canecas quebrada do mundo dos desejos, seremos deixados com fragmentos de algo que poderia ter sido maior.
Voltamos no próximo sábado (31) para finalizar essa, que até o momento, se tornou uma das minhas preferidas da era moderna da série.
Os episódios novos da 2ª temporada de Doctor Who são lançados aos sábados, exclusivamente no Disney+.
Leia sobre os episódios anteriores:
- Crítica | Doctor Who – 2×1: Doutor e a revolução dos incels
- Crítica | Doctor Who – 2×2: Lux é uma brincadeira metalinguística com a luz
- Crítica | Doctor Who – 2×3: O Poço traz horror cósmico e revisita o medo do invisível
- Crítica | Doctor Who – 2×4: Ruby enfrenta os monstros da fake news e do discurso de ódio
- Crítica | Doctor Who – 2×5: Cabelo, tempo e as histórias que nos trançam
- Crítica | Doctor Who – 2×6: Espetáculo e melancolia cósmica
Deixe uma resposta