Crítica | Doctor Who - 2x5: Cabelo, tempo e as histórias que nos trançam
BBC/Divulgação

Crítica | Doctor Who – 2×5: Cabelo, tempo e as histórias que nos trançam

Foi um robô em formato de saleiro num porão que me mostrou do que Doctor Who era realmente capaz. Em “Dalek”, o sexto episódio da 1ª temporada do revival da série, lançado em 2005, fui pego desprevenido ao me comovente com Christopher Eccleston enfrentando aquele velho inimigo metálico em um cenário que mal disfarçava ser um estúdio vazio. O monstro em si — um dos mais icônicos da ficção científica — se movia com aquela clássica rigidez de uma fantasia velha e pesada, com seu visual, que incluía um desentupidor de pia no lugar de um dos braços, denunciava que seguia o mesmo dos anos 60. Não eram os efeitos especiais (que o diga o CGI do episódio seguinte), mas a escrita afiada de Robert Shearman e a atuação visceral de Eccleston que transformavam aquele encontro em algo transcendental. Era pobre em produção, mas infinitamente rico em significado — e foi ali que entendi que a magia de Doctor Who nunca esteve no que se mostra, mas no que se conta.

Assistir a Doctor Who sempre foi um ato de fé: fé de que, mesmo com orçamentos risíveis, uma boa narrativa poderia transformar borracha em terror, papel alumínio em cosmos, e um estúdio vazio em infinito. É essa mesma fé que “A História e o Motor” exige de nós — e recompensa com generosidade. Escrito por Inua Ellams, poeta nigeriano cujo trabalho respira ancestralidade, o episódio não é apenas uma aventura no tempo. É um manifesto sobre memória, um elogio aos cabelos que carregam mapas de fuga, e uma carta de amor às histórias que nos salvam da obliteração. Nele, a barbearia de Lagos, onde a trama se passa, não é só um lugar de cortes e navalhas, mas um portal onde mitologias se cruzam, onde o Doutor (Ncuti Gatwa) — pela primeira vez em 60 anos — é reconhecido não como estrangeiro, mas como parte de uma linhagem.

Crítica | Doctor Who - 2x5: Cabelo, tempo e as histórias que nos trançam
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Se comecei esse texto dizendo sobre as produções de baixo orçamento da série, hoje estamos vivendo a época mais rica de Doctor Who. Aliás, quando a Disney assumiu a distribuição internacional da série, houve um frisson de preocupação entre os fãs. Será que a essência da série seria diluída em nome de um apelo global? O fantasma da americanização pairou como uma sombra sobre a TARDIS. Mas, felizmente, episódios como esses provam que, pelo menos por enquanto, o coração da série continua batendo forte.

A História e o Motor tem todos os recursos visuais que a BBC pode oferecer hoje — mas escolhe, como nos velhos tempos, colocar a narrativa no centro. A aranha cósmica que aparece no clímax é belíssima, sim, mas o que realmente importa é o que ela representa: o medo de sermos esquecidos, de nossas histórias serem apagadas.

E não há símbolo mais potente para falar desse apagamento do que o cabelo de pessoas negras. Em uma das cenas mais comoventes do episódio, Abena (Michelle Asante) trança o cabelo do Doutor enquanto explica que, nos tempos da escravidão, os padrões das tranças escondiam rotas de fuga — coordenadas bordadas em corpos, mapas que os donos de escravos não sabiam ler. É uma imagem que ressoa profundamente em qualquer um que conheça o peso cultural do cabelo crespo na diáspora. Quantas crianças negras ainda hoje são punidas por usarem black power ou tranças na escola? Quantos adultos já ouviram que seu cabelo “não parece profissional”? O episódio pega essa dor e a transforma em poder: cada trança é um fio de resistência, cada corte, um ato de reinvenção.

O barbeiro, antagonista do episódio, é um contador de histórias amargurado, traído pelos próprios deuses que ajudou a criar. Sua obsessão em cortar o “fio” que liga as narrativas humanas às divinas ecoa um trauma real: quantas culturas não foram despedaçadas por colonizadores que queimaram livros, proibiram línguas, substituíram deuses locais por santos católicos? Quando o Doutor ri dele, chamando-o de farsante (“eu conheço os deuses; você não é um deles”), há ali uma crítica à indústria que até hoje empacota culturas não-brancas como exóticas, mas raramente as deixa contar suas próprias histórias.

Crítica | Doctor Who - 2x5: Cabelo, tempo e as histórias que nos trançam
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E quem melhor para confrontar esse roubo narrativo do que o Doutor de Gatwa? O ator traz uma energia diferente para o papel — mais vulnerável, mais consciente de seu corpo, mais aberto ao choro e ao riso. Quando ele diz que esta é sua primeira vez “em um corpo negro”, a linha soa menos como um detalhe casual e mais como um reconhecimento de peso. Afinal, esta é uma série que, até o Natal de 2023 nunca havia tido um Doutor não-branco. Ver Gatwa sendo abraçado pelas ruas de Lagos, chamado de “irmão”, é um momento de catarse não só para o personagem, mas para a própria série Doctor Who e whovians negros, se sentindo parte disso após décadas de atraso.

A aparição breve de Jo Martin como a Doutora Fugitiva só amplifica esse sentimento. Martin foi a primeira atriz negra a interpretar o Doutor (embora numa encarnação ainda misteriosa), e vê-la ao lado de Gatwa, mesmo que por segundos, é um lembrete de como a série está tentando — aos trancos e barrancos — acertar suas contas com o passado. A fala de Martin (“eu era uma fugitiva naquela época”) ganha camadas extras quando pensamos que, por décadas, Doctor Who fugiu de sua própria falta de diversidade.

Mas o episódio não é só sobre reparação — é sobre celebração das histórias. Doctor Who sempre foi, no fundo, sobre a imortalidade das histórias. O Doutor não é um herói porque viaja no tempo; é um herói porque, mesmo após 15 encarnações, ainda acredita que uma boa narrativa pode mudar o universo. E ele está certo: foi assim que a série sobreviveu a cancelamentos, a orçamentos vergonhosos, a efeitos especiais que envelheceram mal.

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O barbeiro é derrotado não por armas ou explosões, mas por uma história melhor. Ele é perdoado, a barbearia é devolvida aos seus, e o Doutor promete voltar para um corte de cabelo — um gesto simples que encerra o ciclo. Porque no fim, todos nós somos como o Doutor: feitos das histórias que vivemos, das que nos contaram, e das que ainda vamos contar. E se há uma lição que Doctor Who me ensinou desde aqueles episódios mal gravados, é que uma boa história nunca precisa de efeitos especiais para ser imortal. Basta que alguém a conte com vontade — e que outro alguém a escute com o coração aberto.

Talvez por isso eu ainda ame essa série, mesmo depois de tantos anos. Ela me lembra que, no fim das contas, todos nós somos nada mais — e nada menos — que um punhado de histórias bem contadas. E que, enquanto houver alguém para escutar, nenhum de nós está realmente perdido no tempo.

Os episódios novos da 2ª temporada de Doctor Who são lançados aos sábados, exclusivamente no Disney+.

Leia sobre os episódios anteriores:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.