Não é exagero dizer que Doctor Who vive de recomeços. Desde 1963, a série já passou por crises criativas, cancelamentos, retornos triunfais e regenerações que dividiram fãs. O final da 2ª temporada da era Disney+, que também encerra a jornada de Ncuti Gatwa como o 15º Doutor, não foge à regra: é um desfecho irregular, cheio de remendos narrativos e decisões que beiram o desespero, mas que, no fim das contas, não consegue arruinar completamente o que veio antes.
Desde “O Festival Interestelar da Canção”, havia esperança de que Russell T. Davies conseguisse amarrar as pontas soltas deixadas ao longo da temporada. A volta de Rani (interpretada por Archie Panjabi) parecia a chave para explicar as inconsistências temporais e multiversais que vinham se acumulando desde o 14º Doutor. Em “Mundo dos Desejos”, essa expectativa ainda parecia plausível – o episódio, embora excessivo, tinha estética envolvente e abria possibilidades interessantes. Mas “A Guerra da Realidade” não só falhou em entregar um fechamento satisfatório como piorou o que já estava frágil.
A escrita de T. Davies, normalmente afiada em seu manejo de mitologia whooviana, parece ter sucumbido à pressão de entregar um final espetacular. O retorno de Rani, uma vilã com potencial para ser uma das grandes adversárias do Doutor, acaba desperdiçado em uma trama que a reduz a mero instrumento de Omega, que por sua vez é transformado em um antagonista genérico, mais próximo de um boss de videogame do que de uma ameaça cósmica digna de seu legado.
A derrota dele, com o Doutor disparando um laser em forma de arma, é um dos momentos mais antitéticos ao espírito da série em anos. Doctor Who sempre se orgulhou de encontrar soluções inteligentes para conflitos, não de recorrer à violência direta como solução fácil. Essa cena, sozinha, simboliza o que há de mais problemático neste final: a sensação de que a história foi forçada a se encaixar em um molde que não lhe servia.
Os fãs mais antigos podem lembrar de finais como “The Parting of the Ways” (2005) ou “The Doctor Fall”s (2017), onde o Doutor encontrava soluções criativas, não violentas, para derrotar seus inimigos. Aqui, porém, a solução foi tão preguiçosa que parece ter saído de um script de ação genérico.
A direção de Alex Pillai, competente em episódios anteriores, também parece ter sofrido com as limitações do roteiro. Enquanto Mundo dos Desejos tinha um visual onírico e uma edição ritmada, A Guerra da Realidade é estranhamente estático em seus momentos mais importantes. As cenas de ação carecem de impacto, e a suposta grandiosidade da batalha final nunca realmente se materializa na tela. A única exceção é a sequência da regeneração, onde a fotografia e a trilha sonora conseguem, finalmente, evocar a emoção que faltou em grande parte do episódio.

Por falar em trilha sonora, talvez ela tenha sido o único aspecto que se manteve em nível alto a temporada inteira, sendo dando peso emocional a cenas que, de outra forma, poderiam ter passado despercebidas. Isso reforça que de todos os retornos que a série trouxe para essa nova era, o compositor Murray Gold, certamente, foi a escolha mais acertada.
E, surpreendentemente, a regeneração em si – algo que costuma ser um momento sagrado para os fãs – foi um dos pontos altos. Apesar da cadência estranha do processo (que pareceu acelerado demais), a cena em que o Doutor abre a porta da TARDIS e se dirige a Joy teve a poesia que faltou em grande parte do episódio. A breve aparição de Jodie Whittaker como a 13ª Doutora, ainda que aleatória, arrancou um sorriso nostálgico. E a quebra de estrutura na regeneração, com Billie Piper surgindo como uma possível 16ª Doutora, foi uma sacada arriscada, mas que pelo menos gerou discussão.

A introdução de Piper como uma possível 16ª Doutora é, claro, o elemento mais controverso do episódio. Por um lado, é difícil não ver nisso um movimento calculado para gerar hype – especialmente depois do retorno de David Tennant na temporada anterior. Por outro, há algo fascinante na ideia de que a regeneração pode ser não apenas uma mudança, mas um retorno. Se isso será explorado com a profundidade que merece ou se será apenas mais um truque de marketing, só o tempo dirá. Mas, no contexto deste final, funciona como um lembrete de que Doctor Who nunca segue as regras que os fãs esperam. Particularmente, adorei ver uma regeneração inesperada e apressada.
O maior problema desse arco final não é necessariamente sua qualidade técnica ou narrativa – é o que ele representa em termos de expectativa. Semanalmente, esta temporada vinha sendo elogiada por episódios divertidos, ricos em camadas e cheios de personalidade, como “A História e o Motor” e “Lux”. Ano passado mesmo, tivemos os excelentes “73 Jardas” e “Ponto e Bolha”, dois dos melhores capítulos da série nos últimos anos. Por isso, ver tudo desmoronar em um final apressado, com explicações jogadas e vilões desperdiçados, dói mais do que o habitual.
E, claro, há o fator produção. Os rumores sobre a saída do protagonista do show antes do esperado e as refilmagens de última hora para acomodar a regeneração são palpáveis no resultado final. Quando uma história é remendada, fica visível. Mas, no fim, isso não importa tanto. O que fica é a frustração de ver uma temporada tão boa terminar com um suspiro, não com um estrondo.
Ainda assim, Doctor Who já sobreviveu a finais piores. Se há uma lição que a série ensinou em 60 anos, é que ela sempre encontra um jeito de se reinventar. Pode ser sem Gatwa, com Billie Piper, ou com um Doutor ainda não anunciado. Pode ser com a Disney, sem a Disney, ou com qualquer outra parceria.
Este foi um final ruim? Foi. É o fim do mundo? Não. Doctor Who já renasceu de cinzas antes – e vai renascer de novo.
Todos os episódios da 2ª temporada de Doctor Who estão disponíveis no Disney+.
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