Há alguns anos o rap entrou na minha vida como uma ferramenta de letramento — e pertencimento — racial. Foi por meio de artistas como niLL, Rincón Sapiencia e BK’ que entendi a potência de uma narrativa que fala de dor, mas também da celebração, da coletividade e do uso de samples como uma extensão de pesquisa e memória. E agora, em 2025, BK’ volta com Diamantes, Lágrimas e Rostos para Esquecer, um álbum que não só consolida sua trajetória como um dos maiores nomes do rap nacional, mas também reafirma a música brasileira como um patrimônio vivo, pulsante e em constante transformação.
O álbum, que chega com 16 faixas e um curta-metragem gravado na Etiópia, é uma experiência sonora e visual que mistura rap, samba, R&B, trap e MPB. BK’ não está apenas fazendo música; ele está contando histórias, resgatando memórias e construindo pontes entre gerações. E o mais impressionante: ele faz isso com uma maestria que só quem realmente ama a arte consegue alcançar.
Um álbum-manifesto
Diamantes, Lágrimas e Rostos para Esquecer — ou DLRE, como já carinhosamente chamado pelos fãs — é um trabalho que fala sobre desapego, crescimento e a busca por paz interior. O título já entrega a proposta: é preciso deixar para trás o que nos prende — sejam pessoas, crenças ou medos — para encontrar nossos “diamantes”, aquilo que realmente importa.
BK’ mergulha fundo nessa jornada de autoconhecimento, mas não o faz sozinho. O álbum é repleto de colaborações que celebram a diversidade da música brasileira. Djavan, Milton Nascimento, Evinha, Luedji Luna, Pretinho da Serrinha, Fat Family e até MC Maneirinho estão presentes, cada um trazendo sua essência para enriquecer o projeto.
A produção musical é outro ponto alto. Com nomes como Deekapz, Kolo, Sango e Kizzy no comando, as faixas ganham camadas sonoras que vão do orgânico ao experimental. Os samples, aliás, são um dos grandes trunfos do álbum. Trechos de clássicos como “Esquinas”, de Djavan, e “Certas Canções’, de Milton Nascimento, são reinventados, criando uma ponte entre o passado e o presente.
BK’ é um contador de histórias
A abertura do álbum, “Você Pode Ir Além’, já coloca o ouvinte no clima. Com uma produção que mistura guitarras distorcidas e batidas pulsantes, a faixa é um convite para embarcar nessa jornada de transformação. FYE, uma das apostas do selo Gigantes, de BK’, aparece aqui com uma participação que complementa perfeitamente a energia da música.
“Só Eu Sei”, que sampleia Esquinas marca um dos momentos mais emocionantes do disco. A letra fala sobre as dores e as vitórias que só nós mesmos conhecemos, e a escolha de samplear Djavan não poderia ser mais acertada. O próprio Djavan comentou sobre a homenagem, dizendo que se sentiu honrado em ver sua obra revisitada por um artista tão talentoso quanto BK’.
Já “Não Adianta Chorar”, com Pretinho da Serrinha, é uma celebração do samba e da resistência. A faixa traz uma levada contagiante e letras que falam sobre a importância de seguir em frente, mesmo quando tudo parece desmoronar.
E não dá para falar de DLRE sem mencionar “Só Quero Ver’, que resgata a voz de Evinha, uma das grandes damas “esquecidas” da música brasileira. A faixa é um desabafo sobre amores que pesam mais do que deveriam, e a presença de Evinha dá um tom de nostalgia e profundidade à música.
A força das colaborações
BK’ sempre foi conhecido por suas parcerias bem pensadas, e em DLRE isso fica ainda mais evidente. Cada colaboração foi escolhida a dedo, não apenas pelo nome, mas pela conexão artística.
Luedji Luna, por exemplo, aparece em “Abaixo das Nuvens” com uma performance arrebatadora. A faixa, que também conta com a participação de Borges, é um dos momentos mais intensos do álbum, tanto pela produção quanto pelas letras.
Outro destaque é “Da Madrugada”, que sampleia o Fat Family. O R&B melódico do grupo se mistura com o rap de BK’, criando uma faixa que é ao mesmo tempo suave e impactante.
E não podemos esquecer de “Ninguém Vai Tirar Minha Paz”, com Melly. A música fala sobre resiliência e autoafirmação, temas que ecoam por todo o álbum.
O visual como extensão da música
O curta-metragem que acompanha o álbum, gravado na Etiópia, é uma experiência à parte. Dirigido por Vellas e produzido pela AKQA Coala.Lab, o filme usa a metáfora das sociedades nômades para falar sobre a necessidade de abandonar o que nos impede de crescer.
A Etiópia, terra que inspirou o nome de BK’ (Abebe Bikila foi o primeiro africano a ganhar uma medalha de ouro olímpica), serve como pano de fundo para uma narrativa visual cheia de simbolismos. A hiena, por exemplo, aparece como representação daquilo que devora nossos medos e fraquezas.
DLRE não é apenas mais um álbum na carreira de BK’. É um marco, um divisor de águas. O rapper, que já era conhecido por sua profundidade artística, eleva ainda mais o nível, entregando um trabalho que é ao mesmo tempo pessoal e universal.
Como uma pessoa preta que encontrou no rap uma forma de entender o mundo, BK’ sempre foi mais do que um artista. Ele é um contador de histórias, quase um educador e trabalha sua música para que ela reflita ele como um espelho. E com DLRE, ele reafirma seu lugar como um dos grandes nomes da música brasileira, não apenas pelo talento, mas pela coragem de se reinventar e de celebrar nossas raízes.
E, como BK’ mesmo diz, “quem faz música com qualidade, maestria e dedicação precisa ser celebrado”. E ele, definitivamente, merece toda a celebração.
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