Imagine um relógio quebrado. Os ponteiros não se movem, mas o tempo passa — implacável, sufocante. Assim é Síndrome da Apatia, novo filme do grego Alexandros Avranas (que dirigiu o excelente “Miss Violência”) que chega como um soco disfarçado de murmúrio. Não há explosões, monstros ou tiroteios. O terror aqui é feito de formulários não preenchidos, sorrisos vazios e crianças que, de tanto medo, decidem parar de existir.
A história poderia ser a de qualquer família refugiada: Sergei (Grigoriy Dobrygin) e Natalia (Chulpan Khamatova) fogem da Rússia com as duas filhas, buscando asilo na Suécia. O pai é um dissidente político, a mãe uma mulher cansada, as meninas são apenas crianças — frágeis, observadoras, presas em um jogo que não entenderam. Mas o que parece um recomeço vira um labirinto de portas fechadas. A burocracia sueca, com seus funcionários educados e regras absurdas, trata seres humanos como números em uma planilha. E a pequena Katja (Miroslava Pashutina), de apenas oito anos, responde da única forma que sabe: desligando-se do mundo.

Avranas dirige como quem observa um aquário. Suas cenas são quadros estáticos, simétricos, onde cada detalhe — uma parede branca, um corredor vazio, um prato de comida intocado — quer contar mais que diálogos. A fotografia em tons gelados (muito azul, muito cinza) faz a Suécia parecer mais uma prisão do que um refúgio. E os atores interpretam com uma contenção que dói: Dobrygin e Khamatova, como os pais, mostram a raiva e o desespero contidos em olhares e mãos trêmulas. Já Miroslava, a menina que “desliga”, é assustadoramente convincente — seu corpo imóvel é o retrato de uma infância roubada.
A direção e o texto — também escrito por Stavros Pamballis — de Avranas joga com a ambiguidade. Nunca ficamos sabendo ao certo quais são os “segredos” que Sergei esconde, ou se sua perseguição política é real ou exagerada. Essa falta de respostas não é um defeito, mas uma escolha narrativa astuta: afinal, para a máquina burocrática, a verdade pouco importa. O que vale é a papelada, a conformidade, a capacidade de se enquadrar. A família russa, por mais que tente se adaptar (chegam a praticar nomes suecos uns para os outros), nunca será suficientemente “pertencente”.
O filme joga com uma ideia perturbadora: e se o sistema for tão cruel que a única saída for desistir? A síndrome da resignação — uma condição psicológica rara, documentada em crianças refugiadas, que as fazem entrar em um estado catatônico, como se desconectassem do mundo para não sofrer mais.
Katja não está doente; ela está exausta. E o mundo ao seu redor, em vez de ajudá-la, só sabe exigir que ela sorria.
Os verdadeiros antagonistas aqui não são burocratas, enfermeiras, policiais — todos seguindo protocolos com uma frieza que beira o surreal. Há uma cena especialmente cruel em que uma assistente social, com um sorriso plástico, pergunta à família se eles estão “gostando da Suécia”, enquanto lhes nega o direito de ficar. É um humor sombrio sem graça nenhuma, só desespero mesmo.
O hospital onde Katja é internada parece saído de um pesadelo. As enfermeiras falam em voz baixa, como se medissem cada palavra, e insistem que os pais devem “manter um ambiente positivo”. É como pedir para alguém sorrir durante um terremoto. Avranas não precisa de monstros sobrenaturais; a vida já é horrível o bastante.
Síndrome da Apatia não é um filme fácil, tampouco convencional. Sua força está justamente naquilo que não é dito — nos vazios entre as palavras, nas pausas carregadas de significado, na fotografia que congela a angústia em quadros simétricos, quase claustrofóbicos. Se o cinema de Michael Haneke nos ensinou algo, é que a violência nem sempre vem em gritos; às vezes, ela se esconde no silêncio burocrático, no sorriso mecânico de um funcionário público, no olhar perdido de uma criança que já não consegue reagir.
Síndrome da Apatia não é um filme sobre reviravoltas heroicas, apenas de pequenos gestos de resistência. Quando Natalia finalmente quebra as regras e abraça a filha, ignorando as ordens médicas, é a primeira vez que alguém age por instinto, não por obrigação. Talvez ali esteja a única esperança possível: a de que, mesmo quando tudo vai contra, ainda dá para segurar alguém.

Podemos, a partir de agora, odiar a Suécia, mas o longa de não é sobre um país, uma família ou uma síndrome. É sobre o que acontece quando o mundo te diz, dia após dia, que você não é bem-vindo. E sobre o que resta quando a única saída é calar — ou então, quem sabe, aprender a gritar sem fazer barulho.
Emmanuelle é um dos filmes que compõem o 1º Festival de Cinema Europeu Imovision, confira a programação completa aqui.
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