Propondo repensar e dar uma repaginada total no filme de 2005, a série Sr. e Sra. Smith estreou em 2 de fevereiro no Prime Vídeo com protagonismo de Donald Glover (“Atlanta”) e Maya Erskine (“Pen15”). A nova proposta é uma dramédia que oferece grandes mudanças da história original. São 8 episódios de aproximadamente 40 minutos recheados de uma nova perspectiva mais humana e pé-no-chão sobre um dos casais de agentes secretos mais icônicos da televisão.
Diferente do filme protagonizado por Brad Pitt e Angelina Jolie, que são secretamente espiões quando de repente recebem a missão de assassinar um ao outro, a série traz o início do casamento falso de John e Jane Smith que são unidos estrategicamente por uma organização misteriosa – até mesmo para o casal – com o objetivo de realizar missões secretas de alto risco. Dispostos a abandonar tudo e todos que conhecem, o casal precisa mudar de identidade e lidar com a rotina incomum da vida que escolheram.
Sem muitas explicações, John e Jane são introduzidos à trama de forma misteriosa, com relances de contexto sobre quem eles são ainda na entrevista inicial, mas construindo com maestria a personalidade de cada um individualmente com o desenvolvimento da história. Jane é uma mulher durona, ambiciosa e que definitivamente, ama a energia frenética e a adrenalina de seu trabalho. John, por sua vez, é mais descontraído e permissivo, dando brecha para envolvimentos emocionais com os outros, por mais que isso possa representar perigo.
Quando idealizada em 2021, a personagem Jane Smith seria inicialmente interpretada por Phoebe Waller-Bridge, atriz de comédia que se destacou principalmente por atuar e roteirizar a série “Fleabag“, também do Prime Vídeo. Phoebe, no entanto, saiu do projeto pelo que chamaram de divergências criativas, de acordo com o The Hollywood Reporter. Tudo indica que a atriz britânica se retirou do projeto após passar seis meses trabalhando no roteiro e perceber que as propostas que tinha para Sr. e Sra. Smith não condiziam com as de Donald Glover, que foi o principal roteirista da série e também tem experiência na produção da série Atlanta.
A série também tem a participação de Paul Dano (“Batman”) como o vizinho pivô de ciúmes do casal, o ilustre ator brasileiro Wagner Moura (“Tropa de Elite“) como outro John, Michaela Coel (“Pantera Negra“) e outros atores que compõem um elenco relativamente pequeno mas de qualidade.
Boas qualidades e defeitos perdoáveis
No passar dos episódios, novas missões surgem para o casal e com cada uma delas vemos os Smith em situações diferentes de investigação e ação, podemos conhecê-los melhor e perceber como agem em cada situação. Apesar do contexto, a série não se aprofunda com tanta frequência em cenas de ação e definitivamente não tem intenção de tornar o roteiro refém da necessidade desses combates. Algumas são bem construídas, enquanto outras intencionalmente são cortadas direto para o pós, focando mais nas consequências do que na ação em si.
Essa opção de como levar a trama foi acertada, pois dentre os pontos fortes da série pode-se apontar o desenvolvimento de personagens muito bem arquitetados, garantindo que tanto Jane quanto John sejam perfeitamente individuais em suas personalidades e em cada episódio ganhem uma nova camada para o público conhecê-los melhor. Diferente do filme, os personagens são humanizados, identificáveis e quase palpáveis, demonstrando inseguranças, fraquezas, defeitos e discussões comuns do cotidiano, tudo isso enquanto enfrentam missões quase suicidas. Esse cuidado ao construí-los garante ao público a sensação de proximidade, intimidade, e a impressão que fica é que estamos dentro da casa, como amigos observadores.
Ambos têm uma química absurda como dupla, o que é muito favorecido por ser uma história contada em 8 episódios, o que dá tempo para aprofundar as dinâmicas do casal. Inicialmente, a maneira repentina como o romance é engatado gera um incômodo pela falta de construção de uma tensão sexual, mas com o passar dos episódios essa velocidade é justificada pois logo a série mostra que não está interessada em contar uma história de amor como as outras, e sim algo que não se importa em causar desconforto, incômodo e te fazer refletir sobre a complexidade das relações interpessoais. Ou seja, o drama.
É possível inclusive ressaltar a versatilidade dos atores quando o enredo propõe uma mudança nas atitudes dos personagens, pois nos momentos que começam a enfrentar desentendimentos se torna quase impossível tomar um lado diante das discussões, por serem personagens bem construídos com motivações reais e personalidades fortes, além de muito bem interpretados. John e Jane são cobertos de camadas, algumas mais dolorosas que outras e por vezes bem escondidas. Seus desenvolvimentos nunca são interrompidos, pois até os últimos minutos da série o espectador ainda pode descobrir coisas novas sobre os protagonistas que já achava conhecer.
A série promete um drama com comédia, classificado por muitos como a tendência da nova geração de séries, apesar de não escapar da estranheza do público. Donald Glover tem raízes fortes na comédia, como em “Community” e na já mencionada “Atlanta“, portanto tende a trazer para suas produções um humor seco, sem piadas obviamente planejadas, e sim uma comédia ácida construída pelo contexto, que ganha muita força no diálogo descontraído, como se por acidente a situação se tornasse engraçada. Não é, no entanto, um humor de arrancar gargalhadas, mas o suficiente para provocar um sorriso em muitas situações divertidas.
O humor pode não ser do gosto da maioria do público, mas garante os momentos de descontração entre os protagonistas, algo que a série sabe fazer a partir do balanceamento de cenas mais intensas e outras leves, fazendo assim o episódio em uma crescente de acontecimentos sem cansar tanto o espectador. No entanto, nos primeiros episódios, o ápice da tensão ainda não conquista o sentimento de nervosismo e frenesi que a série deseja causar, o que torna alguns embates mornos.
Isso não se deve às cenas de ações pouco valorizadas, e sim pela maneira como o perigo das situações não é ressaltado e é muitas vezes facilmente resolvido pelos personagens, perdendo a tensão em alguns momentos. Porém isso não acontece nos últimos episódios, quando se torna impossível não se envolver com a situação de perigo que eles se colocam e principalmente o perigo que há entre os dois.
Sr. e Sra. Smith, no fim das contas, apresenta a história de um relacionamento nada convencional: não é perfeito, passa por turbulências de confiança e gera incômodo quando problemas aparecem. É mais sobre os altos e baixos de um casal dentro dessa rotina incomum do que sobre as missões em si, sendo a justificativa e motivação delas pouco ou nada importantes no enredo. Por que sequestrar um senhor e mantê-lo vivo até amanhecer? Por que entregar um bolo explosivo na casa de uma família? Não é importante e o roteiro não se esforça em explicar. Mesmo assim, aquilo que se dispõe a fazer, é feito com carinho e agrada com os fios da história bem amarrados, apesar dos percalços.
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