Especial | Rever Cidade dos Sonhos no cinema é uma exercício de luto coletivo
Cidade dos Sonhos/Reprodução

Especial | Rever Cidade dos Sonhos no cinema é um exercício de luto coletivo

O cinema de David Lynch sempre foi um território de fronteiras borradas, onde a realidade escorre pelos dedos como areia de um relógio quebrado. Assistir à versão restaurada em 4K de Cidade dos Sonhosagora em cartaz alguns cinemas brasileiros — não é simplesmente revisitar um filme, mas adentrar novamente um labirinto que se reconfigura a cada visita. A morte de Lynch, em janeiro de 2025, acrescenta uma camada fantasmagórica a essa experiência: estamos diante de uma obra que, como seus personagens, parece flutuar entre dois mundos. O do artista vivo, que poderia ainda surpreender-nos, e o da criação que agora está completa, congelada no tempo, mas paradoxalmente mais viva do que nunca na mente dos espectadores.

Há algo profundamente hipnótico na maneira como a película original, agora escaneada em alta definição, mantém sua textura de sonho. Os grãos de filme não foram suavizados, os ruídos não foram eliminados, os contrastes entre luz e sombra permanecem tão brutais quanto em 2001. A restauração não “moderniza” Cidade dos Sonhos — ela o preserva como um artefato arqueológico de um tempo em que o cinema ainda ousava ser incompreensível. E talvez seja essa a primeira lição que o filme nos oferece, duas décadas depois: numa era de narrativas pasteurizadas e finais explicados em vídeos de YouTube, Lynch nos lembra que o verdadeiro poder das imagens está justamente no que elas se recusam a dizer.

Los Angeles, na visão de Lynch, nunca foi uma cidade real, mas um estado de consciência. Desde os primeiros planos — um travesseiro que engole a câmera, um cadáver atrás de um restaurante, uma atriz amnésica que pode ou não ser quem diz ser —, somos convidados a abandonar a âncora da lógica. O que parece aleatório, no entanto, é meticulosamente orquestrado. Tome a cena em que Betty (Naomi Watts) e Rita (Laura Harring) descobrem uma bolsa contendo… algo inominável. A sequência é filmada como um pesadelo infantil: cores saturadas, cortes bruscos, uma sensação de que o chão pode desaparecer a qualquer momento. Mas observe a mise-en-scène: a posição dos objetos, a luz que incide sobre o vazio, o silêncio que precede o terror. Nada é acidental. Lynch, frequentemente chamado de surrealista, era na verdade um artesão do controle absoluto. Sua genialidade estava em fazer o calculado parecer caótico.

Esse jogo de ilusão se estende à própria estrutura do filme, que começou como um piloto rejeitado pela TV e se transformou em algo maior — e mais estranho — no processo. Assistir a Cidade dos Sonhos é testemunhar um artista transformando limitações em alquimia. As marcas do projeto original ainda estão lá: os arcos truncados, os personagens que aparecem e desaparecem sem explicação, a sensação de que estamos vendo fragmentos de uma série que nunca existiu. Mas é justamente essa fratura que dá ao filme sua força. Como os sonhos (e como a memória), a narrativa não obedece à linearidade, mas a uma lógica emocional. Quando Betty, no terceiro ato, se revela como Diane, uma atriz fracassada consumida pela inveja e pelo remorso, não estamos diante de um “twist”, mas de uma verdade que sempre esteve lá, escondida à vista de todos.

A relação entre Betty e Diane é, em muitos aspectos, o coração do filme — e também sua maior armadilha. Lynch nos faz acreditar que estamos acompanhando uma história sobre identidades trocadas, um conto de fadas hollywoodiano com um núcleo noir. Só então, como um pesadelo que se revela dentro de outro pesadelo, o filme se desdobra em algo mais sombrio: um retrato da autodestruição, do modo como nossas fantasias mais doces podem se tornar veneno. A cena final, com a velha sorridente reduzindo tudo a pó dentro de uma caixa azul, é uma das mais devastadoras já filmadas — não porque “explica” o enigma, mas porque nos força a encarar a possibilidade de que nenhuma explicação bastará.

É aqui que a morte de Lynch ressoa com mais força. Saber que não haverá novos filmes, que nenhuma entrevista futura trará com informações adicionais, transforma Cidade dos Sonhos em um objeto melancólico. Mas também o liberta. Como a canção “Llorando” de Rebekah Del Rio — performada em espanhol numa cena que arranca lágrimas mesmo sem subtítulos —, o filme transcende a necessidade de ser compreendido. Ele simplesmente é. E nesse “ser”, encontra sua imortalidade.

“No Hay Banda” é a metáfora perfeita para o próprio cinema de Lynch. Quando Del Rio, a plateia chora, mesmo sabendo que a música é uma ilusão – afinal, é só uma fita tocando. Assim como o filme, que se desdobra em sonhos dentro de sonhos, a cena nos engana e nos comove justamente por sua falsidade confessada. Lynch nos lembra que o poder do cinema não está na realidade que ele imita, mas na verdade que ele inventa. Diane sonha ser Betty, o público sonha com a tela, e todos acordamos com o mesmo vazio – e a mesma beleza – de quem descobre que a emoção era real, mesmo quando tudo era mentira.

A experiência de rever o filme no cinema, especialmente agora, é também um exercício de luto coletivo. A plateia ri das piadas absurdas (o assassino desastrado, o produtor histérico), suspira nos momentos de beleza surreal (Del Rio no clube silência), e permanece em silêncio absoluto quando a tela escurece. Ninguém pergunta “o que isso significa?”. Há um respeito tácito pela obra, mas também por nós mesmos — pela nossa capacidade de abraçar o desconhecido.

Cidade dos Sonhos é sobre o ato de assistir. Sobre como projetamos nossos desejos e traumas nas histórias que consumimos. Sobre como Hollywood (e, por extensão, o cinema) é tanto um farol quanto um espelho deformado. E, mais cruelmente, sobre como a arte pode ser ao mesmo tempo refúgio e prisão. Quando Diane atira contra si mesma no apartamento decadente, é difícil não pensar no próprio Lynch — um homem que passou a vida criando mundos alternativos, só para descobrir que nenhum deles poderia salvá-lo da mortalidade.

Mas o filme persiste. E com ele, a pergunta que nenhuma restauração em 4K poderá responder definitivamente: o que acontece quando acordamos do sonho? Lynch, é claro, nunca nos daria uma resposta. Preferia que continuássemos a perguntar.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.