Dilson Silva/Agnews

Gaga em Copacabana: As referências de uma ópera gótica sob as areias do Rio

A noite de 3 de maio de 2025 entrou para a história não apenas como mais um show, mas como um evento que transcendeu o conceito de performance musical. Lady Gaga, diante de mais de mais de 2 milhões de pessoas em Copacabana, não cantou — ela encarnou. O que se viu na praia carioca foi uma obra de arte multimídia, uma fusão de teatro, cinema e ritual religioso, onde cada movimento, cada luz, cada silêncio foi meticulosamente coreografado para contar uma história de autodestruição e redenção.

Antes do primeiro ato, um texto foi projetado em telões, lido em voz grave e ecoante:

“Este é o Manifesto do Caos.

A Senhora está diante de mim, olhos arregalados e cheios de ira. Sua bengala na mão direita, no pé esquerdo, um gesso. ‘Cuidado’, ela diz, ‘o caos em seu coração nunca cessará, até que você encontre outra maneira de controlar o que busca’. Seu tom assombroso, sua fala inquieta, a música de sua boca, suas unhas arranhando e sua vida interior são como uma tempestade: são barulhentas.

De repente, em toda sua glória, começamos a dançar. Minha cabeça se inclina para trás, meu peito explode, minha mão começa a se contrair. Não conhecer a paz é o grande pesadelo para todos nós. Despertar e sentir-se inquieto em uma casa sem paredes.

Então, eu devo cantar e construir as paredes para embalar meu próprio espaço. E meu próprio som crescerá a fortaleza de um lar apagado. E ela e eu encontraremos uma maneira de viver como gêmeos duelando. Mas eu saberei, se no fim, a Senhora do Caos vencer.”

O texto, quase profético, serviu como fio condutor para toda a narrativa do show — uma jornada do caos à aceitação.

Ato 1: Manifesto do caos

Desde o primeiro segundo, ficou claro que aquela não seria uma apresentação convencional. O show, estruturado em cinco atos como uma ópera gótica, bebeu de referências que vão do expressionismo alemão ao cinema de suspense noir. A abertura, com “Bloody Mary”, trouxe Gaga em um trono distópico, envolta em uma saia-armadura que se expandia como asas mecânicas. A iluminação em contraluz criava silhuetas dramáticas, evocando “Metropolis” (1927), enquanto a câmera — da transmissão ao vivo — alternava entre closes fechados da cantora e planos abertos que transformavam o público em um mar de corpos.

Aqui, a técnica não era mero efeito, mas narrativa. Em “Perfect Celebrity”, a cantora encarou um esqueleto em um duelo que lembrava “Hamlet”, se a peça shakespeariana fosse reescrita como um thriller pop sobre a fama. A sequência tinha a mesma tensão psicológica de “Cisne Negro” (2010), com Gaga oscilando entre o humano e o monstruoso.

Ato 2: Dualidade e ritual

Entre os cinco atos, o segundo — intitulado “E ela caiu em um sonho gótico” — emergiu como o mais fascinante. Nele, Gaga explorou a dicotomia entre persona e pessoa, entre o mito e a mulher por trás dele. Em “Disease”, música de abertura do álbum “Mayhem”, ela foi simbolicamente enterrada viva por sua versão passada — a do icônico vestido de carne do VMA 2010. A cena, filmada como um flashback expressionista, lembrava “Demônio de Neon” (2016), onde a beleza era uma armadilha mortal.

Ato 3: Corpo como efeito especial

A transição para “Killah” trouxe um clima de noir dos anos 1940, como se Gaga fosse ao mesmo tempo a femme fatale e a vítima de sua própria lenda. Os figurinos, meticulosamente elaborados, não eram meros adereços, mas extensões de sua narrativa: a peruca preta e justa da rainha tirana deu lugar a cachos loiros e infantis, numa alusão à inocência perdida. As luvas de espinhos e os sapatos que lembravam garras completavam a metáfora visual — a moda como linguagem.

Enquanto muitos artistas recorrem a pirotecnia ou hologramas, Gaga usou seu próprio corpo como o maior truque do espetáculo. Em “Poker Face”, o palco virou um tabuleiro de xadrez, com dançarinos como peças a serem sacrificadas — uma coreografia que remetia a “O Sétimo Selo” (1957), mas com a energia de um clipe dos anos 1980. Seu vocal, potente e sem playback, foi outro destaque. Em “Shallow”, a simplicidade do piano e da voz criou um momento de intimidade em meio ao caos, filmado em close-up — o silêncio antes do tiroteio.

Ato 4: Calmaria

O quarto ato, batizado como “Despertá-la é perdê-la”, mergulhou em questões de identidade e autoconhecimento, com um clima introspectivo que contrastou com a energia explosiva do começo. “Shadow of a Man” e “Born This Way” ganharam introduções lentas, quase teatrais, como se Gaga estivesse contando sua própria história em câmera lenta. O piano dominou em “Blade of Grass” e “Shallow”, trazendo um respiro emocional antes da virada radical em “Vanish Into You”, que reintroduziu as batidas eletrônicas e preparou o terreno para o clímax.

Ato 5: Monstros nunca morrem

E que clímax. No final, Gaga encenou seu próprio renascimento — literalmente. A narrativa alegórica de uma cirurgia, uma morte simbólica e um retorno à vida ecoou sua mitologia pessoal: “Somos monstros, e monstros nunca morrem”. A plateia, já em êxtase, recebeu “Bad Romance” como um hino ampliado, com arranjos que prolongavam a tensão antes da liberação catártica.

E assim, sob as estrelas do Rio, entre o mar e a areia, a rainha do pop provou que sua arte não é feita apenas de música, mas de experiência. Copacabana, por uma noite, tornou-se o palco definitivo para uma artista que não se contenta em entreter — ela exige ser vivida.

Uma jornada de sacrifício e renascimento

O repertório foi dividido em blocos temáticos, cada um com sua própria identidade visual e sonora. Confira o setlist:

De veludo e vício

  • “Bloody Mary”
  • “Abracadabra”
  • “Judas”
  • “Scheiße”
  • “Garden of Eden”
  • “Poker Face”
  • “Abracadabra (Gesaffelstein Remix)”

E ela caiu em um sonho gótico

  • “Perfect Celebrity”
  • “Disease”
  • “Paparazzi”
  • “Alejandro”
  • “The Beast”

O belo pesadelo que conhece seu nome

  • “Killah”
  • “Zombieboy”
  • “Die With a Smile”
  • “How Bad Do U Want Me”

Despertá-la é perdê-la

  • “Shadow of a Man”
  • “Born This Way”
  • “Blade of Grass”
  • “Shallow”
  • “Vanish Into You”

Ária eterna do coração monstro

  • “Bad Romance”

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.