Ser filho de um Beatle é uma espada de dois gumes. Por um lado, você começa sua carreira musical com um reconhecimento de nome maior que a maioria dos artistas — mesmo os bem-sucedidos — , o que te garante um público instantâneo. Por outro lado, você está sempre à sombra do seu pai, um dos artistas mais influentes e amados do século XX. Qualquer sucesso que você alcançar será, a princípio, atribuído ao seu sobrenome; e, mesmo assim, você ainda não é o seu pai, como cada crítico faz questão de destacar.
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Ao considerar a banda de Sean Lennon, The Ghost of a Saber Tooth Tiger (GOASTT), seria fácil traçar comparações com seu icônico pai. Afinal, com sua mistura de psicodelia onírica, rock de garagem e folk-pop ornamentado, Midnight Sun, o até então último trabalho do grupo, acaba de completar 10 anos.
A banda, fruto da parceria de Lennon com sua namorada, a outrora modelo Charlotte Kemp Muhl, se posiciona firmemente no final dos anos 1960, mas trazendo consigo um engenharia de som atual para a época — diferente de grupos do chamado neo-psicodélico, como o Temples, que parecia querer emular um som dos anos 1960 em 2014.
Não é uma cópia do pai
Na medida em que Midnight Sun evoca John, no entanto, isso acontece principalmente pela voz inconfundivelmente “lennonesca” de seu filho. Mas, se Tame Impala ou Temples tivessem feito este álbum, os críticos falariam mais sobre Syd Barrett — primeiro vocalista do Pink Floyd — do que sobre os Beatles, mais sobre a clássica coletânea “Nuggets” do que sobre “Nowhere Man”.
O que diferencia GOASTT de Tame Impala e outros do gênero é que, em vez de apenas imitar o passado, eles o revitalizam. Lennon e Kemp Muhl trocam a obsessão atual por uma produção propositalmente retrô e lo-fi por um som analógico rico, mantendo o calor granuloso sem sacrificar a fidelidade.
A inventividade musical exibida em Midnight Sun também supera a de seus contemporâneos. “Last Call” é talvez a faixa de destaque, saltando do pop animado para deslizes de guitarra estilo Floyd em um piscar de olhos. Apenas a ainda mais floydiana “Moth to a Flame” — que soa uma faixa perdida do “Meddle” — desafia-a pelo título de destaque do álbum.
Mas até os esforços mais curtos, como a carnavalesca “Don’t Look Back Orpheus” ou a estranhamente cativante “Great Expectations”, estão repletos de floreios psicodélicos e ganchos inesperados.
O GOASTT parece conseguir desacelerar o ritmo de forma mais autêntica, com “Animals” expressando uma postura mais espiritual através de batidas tribais, sem soar forçado ou clichê. “A nostalgia quer ser minha amiga”, canta Muhl em “Johannesburg”, e embora isso possa ser verdade, é uma amizade que respeita os pais, ainda é empolgante e — apesar da necessidade de relembrar o passado — também olha para o futuro.
A referência brasileira
Embora não tão popular para o público geral, quanto é no mundo da música, Os Mutantes, é provavelmente uma das mais influentes bandas para a música gringa. Tanto é que Sean, mesmo sendo filho de John e Yoko, tem como maior ídolo o multiartista Arnaldo Baptista, a mente brilhante que comandava o grupo paulista, ao lado do irmão, Sérgio Dias e de uma jovem Rita Lee.
Para a construção de suas músicas, além do talento dos músicos e ousadia em suas letras, os integrantes d’Os Mutantes usava guitarras, baixos e pedais de efeito construídos de forma caseira. Isso gerava sons malucos, experimentais e únicos.
Como próprio Sean descreve o som d’Os Mutantes em uma entrevista: os arranjos são misteriosos, muito sofisticados uma certa brutalidade. Se em 2014 isso já era evidente, dez anos depois, fica mais forte a tentativa de fazer um som dos mutantes à sua forma.
A química musical de Sean e Charlotte
Não é difícil imaginar de onde Sean herdou seu gosto pela experimentação; afinal, seus pais não gravaram um álbum de ruído vanguardista e estamparam suas versões nuas na capa, certo? Mas, embora Yoko Ono tenha sido e continue sendo uma artista notável, na opinião deste crítico, sua marca peculiar de arte musical nunca combinou tão bem com a de John. Sean e Charlotte Kemp Muhl, por outro lado, são muito mais compatíveis em estúdio.
Estou tentado a atribuir as passagens psicodélicas e pesadas a Sean e o folk de Kemp Muhl, mas isso tem mais a ver com seus respectivos timbres vocais e estereótipos de gênero do que com outra coisa. De qualquer forma, eles se encaixam notavelmente bem — longe de Sean seguir os passos de John (ou de Paul, nesse caso) e simplesmente arrastar a namorada para o estúdio para cantar com ele, está claro que o GOASTT é uma parceria criativa genuína.
Existem filhos de famosos que até conseguem sair da sombra de seu sobrenome, mas esse nunca será o caso de Sean, no entanto, se ele fosse um completo desconhecido, se o GOASTT fosse apenas mais uma banda de Nova York com um nome intrigante, Midnight Sun ainda mereceria ser ouvido por seus próprios méritos como um dos melhores discos a emergir do revival psicodélico, mesmo hoje, em 2024, depois do cansaço desse tipo de som.
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