Antes de ser uma das maiores obras de ficção científica, O Eternauta foi, e ainda é, um retrato corajoso e inquietante da realidade latino-americana. Escrito por Héctor Germán Oesterheld e com ilustração de Francisco Solano López, essa história, que atravessa gerações, nos convida a refletir sobre sobrevivência, coletividade e resistência, temas tão presentes na América Latina, especialmente no período em que foi escrita. E antes que a tão aguardada adaptação para a Netflix protagonizada por Ricardo Darín se concretize, é hora de revisitar essa obra-prima que, além de clássica, continua extremamente atual.
- Leia também: O Eternauta | Netflix revela as primeiras imagens da adaptação da clássica HQ argentina
Sobre o que é O Eternauta?
Lançada inicialmente entre 1957 e 1959 na revista argentina Hora Cero, O Eternauta se apresenta como uma história de ficção científica que vai além do gênero. No centro da trama está a cidade de Buenos Aires, coberta por uma neve mortal que mata instantaneamente todos que entram em contato com os flocos.
A narrativa acompanha Juan Salvo, sua família e amigos, que, isolados em sua casa, tentam entender o que está acontecendo e, mais importante ainda, lutar pela sobrevivência. Uma neve que se revela fosforescente e que desperta uma série de perguntas sobre sua origem e o destino dos sobreviventes.
O Eternauta não se limita a ser uma simples história sobre uma ameaça alienígena. Ela discute as tensões sociais, políticas e existenciais da época e, ainda mais, um grito de resistência frente à adversidade. A obra foi escrita e publicada em uma Argentina que vivia as tensões da Guerra Fria, marcada por golpes militares e repressão, e é impossível não perceber as críticas veladas ao regime militar que viria a se instalar anos depois, no início dos anos 70.
O escritor Héctor Oesterheld, que mais tarde seria vítima da repressão política, tem aqui seu trabalho imortalizado, mostrando o quanto os quadrinhos podem ser um reflexo do contexto social e político. De fato, O Eternauta não é uma obra de ficção científica qualquer; é uma reflexão poderosa sobre a luta do povo contra as forças opressoras, seja de fora ou de dentro.
De Robinson Crusoé ao coletivo
A inspiração inicial de Oesterheld para a história de O Eternauta veio de uma de suas leituras mais marcantes: “As Aventuras De Robinson Crusoé”, o romance clássico de Daniel Defoe. O autor via a obra inglesa como um retrato da solidão humana e da luta pela sobrevivência. Porém, ao transpor essa ideia para os quadrinhos, ele decidiu subverter a premissa: em vez de um homem isolado numa ilha, O Eternauta coloca um grupo de pessoas – uma verdadeira família e uma rede de amigos – lutando pela sobrevivência em meio a uma catástrofe global.
Oesterheld vai além ao introduzir a ideia de que, mais do que um herói solitário, o verdadeiro herói de sua história é o coletivo. A luta não é de um único homem contra a adversidade, mas de uma comunidade que se une para enfrentar um mal comum. Esse espírito coletivo, que permeia a trama, reflete uma visão mais política e social da realidade argentina e da América Latina, regiões marcadas por uma história de resistência e luta contra a opressão.
O realismo rascunhado de Francisco Solano López
Se a história de O Eternauta tem um caráter profundo e crítico, a arte de Francisco Solano López complementa de maneira impressionante a narrativa. Seu traço realista padrão da época, ganha novos contornos com uma mão “mais pesada” no sombreamento e em suas linhas curvas. Esse traço mais “feio” ajuda a criar uma atmosfera de tensão constante, onde cada página parece transmitir a iminência de um desastre.
O tom sombrio e o uso de sombras reforçam o clima de desolação e desespero que envolve os personagens. Não há uma cor vibrante para suavizar a angústia da história; tudo é apresentado em preto e branco, o que fortalece ainda mais o sentimento de isolamento e a sensação de inevitabilidade que permeia o enredo.
Além disso, o cenário de Buenos Aires, uma cidade familiar para muitos leitores argentinos, se torna um personagem à parte na história. As ruas, praças e edifícios reais da cidade se tornam o palco da luta pela sobrevivência. É um exercício interessante para os leitores, principalmente os de fora, que podem até buscar no Google Maps — como fiz — as localizações mencionadas na história, criando uma conexão ainda mais visceral com o que está sendo narrado.
Uma história atemporal
O que torna O Eternauta uma obra tão poderosa e relevante até hoje? Além da sua visão crítica sobre a sociedade, muito antes de obras como “The Walking Dead” e “Extermínio”, Oesterheld acertou ao abordar temas “universais” que permanecem atuais. A tensão política, a luta pelo poder, a solidariedade e os sacrifícios que o coletivo deve fazer em nome da sobrevivência continuam a ser questões pertinentes, seja na década de 1950 ou nos dias de hoje.
A obra também se insere em um contexto mais amplo de crítica ao imperialismo e à opressão, algo que se reflete nas transformações pelas quais a Argentina passaria nas décadas seguintes. Em 1969, a história foi relida com um tom ainda mais político, denunciando o imperialismo dos EUA e a opressão militar. E, mais adiante, em 1976, durante a ditadura militar argentina, O Eternauta voltou à tona de maneira clandestina, mostrando que, mesmo em tempos de censura, a arte e a literatura podem ser um poderoso veículo de resistência.
O impacto de O Eternauta na cultura argentina e latino-americana é indiscutível. Não à toa, a obra se tornou um marco nas HQs da América Latina, ao lado de outras grandes criações como “Mafalda”, de Quino. Oesterheld se tornou uma referência para muitos outros roteiristas e, para a Argentina, ele é um símbolo de resistência à repressão e à violência do Estado.
Uma leitura “obrigatória”
Nos últimos tempos, a popularidade de O Eternauta tem crescido, especialmente com o anúncio de sua adaptação para a Netflix. A adaptação pode até trazer novos olhares sobre a história, mas a essência da obra, sua crítica política e seu olhar atento sobre a coletividade, são elementos que só podem ser plenamente vividos através da leitura da HQ original.
Compre na Amazon.
Se você ainda não conhece O Eternauta, esta é a hora. Não se trata apenas de uma leitura para fãs de ficção científica, mas de uma obra essencial para qualquer pessoa interessada na história política da América Latina e nas formas de resistência social. A história de Juan Salvo e seus amigos é, no fim das contas, a história de todos nós, que, diante das adversidades da vida, precisamos aprender a lutar juntos para sobreviver.
Com estreia prevista para esse ano, mas sem data definida, a adaptação de O Eternauta contará com seis episódios, escrita e produzida por Bruno Stagnaro (“Okupas”) e Ariel Staltari (“Quase Morta”). Além de Darín, o elenco conta com Carla Peterson, César Troncoso, Andrea Pietra, Ariel Staltari, Marcelo Subiotto, Claudio Martínez Bel, Orianna Cárdenas e Mora Fisz.
Leia outros especiais:
Deixe uma resposta