A pandemia de COVID-19 foi um período de incertezas, isolamento e, paradoxalmente, de reinvenção. Enquanto o mundo físico se fechava, o virtual se expandia, tornando-se um refúgio não apenas para o entretenimento, mas também para a expressão artística. Foi nesse cenário que um grupo de atores, presos em suas casas e afastados dos palcos, encontrou em “Grand Theft Auto (GTA) Online” — um jogo conhecido por seu caos e violência — um palco improvável para encenar uma das obras mais icônicas da literatura mundial: “Hamlet”, de William Shakespeare. O resultado dessa fusão entre alta cultura e cultura pop digital é o documentário “Grand Theft Hamlet”, uma obra que, à primeira vista, parece absurda, mas que, ao se desenrolar, revela-se uma reflexão profunda sobre arte, resistência e a natureza humana.
O filme, dirigido por Sam Crane e Mark Oosterveen, não é apenas uma adaptação de Hamlet dentro de um videogame. É, acima de tudo, um testemunho da resiliência dos artistas diante de um mundo que parecia desmoronar. A pandemia trouxe consigo uma sensação de impotência, especialmente para aqueles cujo trabalho depende da presença física de um público. Teatros fechados, produções canceladas e um futuro incerto levaram muitos a questionar se valia a pena continuar. Foi nesse contexto que Crane, um ator britânico que havia acabado de alcançar o auge de sua carreira ao interpretar Harry Potter no teatro londrino, se viu desempregado e sem perspectivas. A pergunta “ser ou não ser” nunca pareceu tão pertinente.
Mas, como muitas vezes acontece na arte, a crise gerou criatividade. Ao explorar o mundo aberto e caótico de Grand Theft Auto Online, Crane e Oosterveen tiveram a ideia de usar o jogo como um palco virtual. A escolha não poderia ser mais contraditória: um espaço conhecido por sua violência gratuita e anarquia transformado em um teatro improvisado para uma peça que trata de temas como moralidade, existência e a fragilidade da vida. Essa contradição, no entanto, é justamente o que torna o projeto tão fascinante. O jogo, que durante a pandemia se tornou um refúgio para milhões de pessoas em busca de escapismo, foi ressignificado como uma ferramenta de expressão artística.
A técnica utilizada no documentário é tão inovadora quanto sua premissa. Tudo foi filmado dentro do jogo, utilizando as ferramentas disponíveis no próprio Grand Theft Auto Online. Os atores controlavam seus avatares, que interpretavam os personagens de Hamlet, enquanto recitavam os diálogos shakespearianos. A animação rígida e limitada do jogo, que poderia ser vista como uma desvantagem, acabou se tornando parte do charme da produção. Os movimentos robóticos dos avatares e a falta de expressões faciais detalhadas criam uma estética única, que oscila entre o cômico e o melancólico. É como assistir a uma peça de teatro medieval, onde a falta de recursos técnicos é compensada pela força da interpretação e da narrativa.
Um dos aspectos mais interessantes do filme é como ele lida com as interrupções e o caos inerentes ao jogo. Durante as performances, é comum que jogadores aleatórios apareçam e comecem a atirar ou explodir tudo ao redor. Em vez de tentar evitar essas situações, o documentário as incorpora, transformando-as em parte da narrativa. Quando um espectador decide atacar outro com um lança-foguetes no meio de um solilóquio, a cena se torna uma metáfora para a luta constante da arte contra as distrações e a destruição. É como se o filme dissesse: “A vida é caótica, mas a arte persiste”.
Essa abordagem também resgata uma das características mais autênticas do teatro elisabetano, época em que Shakespeare escreveu suas peças. Naquela época, o público não era exatamente conhecido por seu comportamento civilizado. Gritos, brigas e interrupções eram comuns, e os atores precisavam lidar com isso enquanto mantinham a performance. Grand Theft Hamlet captura essa essência, trazendo-a para o século XXI de uma forma que só seria possível em um ambiente virtual como o de GTA.

Outro ponto forte do documentário é como ele equilibra o humor e a profundidade. A ideia de encenar Hamlet dentro de um jogo tão caótico é, por si, cômica. Ver avatares recitando “ser ou não ser” enquanto são perseguidos por policiais ou atacados por alienígenas nus é hilário. No entanto, por trás do absurdo, há uma reflexão sincera sobre o papel da arte em tempos de crise. A pandemia nos forçou a repensar como nos conectamos e como expressamos nossa humanidade. Grand Theft Hamlet é um exemplo de como a arte pode surgir nos lugares mais improváveis, mesmo quando o mundo parece desmoronar.
A escolha de Hamlet como peça central também não é aleatória. A obra de Shakespeare trata de “temas universais”, como a dúvida, a morte e a busca por significado. Esses temas ressoam profundamente em um momento em que tantas pessoas estavam (e ainda estão) lidando com perdas e incertezas. Ao trazer Hamlet para o mundo do GTA, o documentário não apenas adapta a peça para um novo meio, mas também a recontextualiza, mostrando como suas questões continuam relevantes, mesmo em um cenário tão distante do original.
Por fim, Grand Theft Hamlet é uma celebração da criatividade humana. Em um momento em que muitos governos e instituições desvalorizaram as artes, sugerindo que elas eram menos essenciais do que outras áreas, o filme prova o contrário. A arte não é um luxo; é uma necessidade. Ela nos ajuda a entender o mundo, a lidar com nossas emoções e a nos conectar com os outros, mesmo quando estamos fisicamente distantes.
E assim, o que começou como uma fuga do tédio e da frustração do lockdown se transformou em uma obra que transcende seu meio. Grand Theft Hamlet não é apenas um filme sobre uma peça de Shakespeare encenada em um videogame. É um testemunho do poder da arte de se adaptar, de resistir e de encontrar beleza mesmo no caos. E, de certa forma, é também uma resposta àquela pergunta que tanto assombrou Sam Crane e tantos outros artistas durante a pandemia: sim, vale a pena continuar. A arte sempre encontra um caminho, mesmo que esse caminho seja um mundo virtual cheio de explosões e alienígenas nus.
Você pode assistir Grand Theft Hamlet na MUBI.
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