Ritas, o documentário dirigido por Oswaldo Santana e codirigido por Karen Harley, não é apenas uma biografia linear de Rita Lee. É um mosaico vibrante, uma colagem de vozes, imagens e canções que refletem a pluralidade de uma artista que nunca se deixou definir por um só rótulo. O filme, assim como sua protagonista, recusa fórmulas: não há talking heads explicando sua importância, nem cronologia rígida. Em vez disso, a narrativa é costurada pela própria Rita, em depoimentos que vão desde entrevistas antigas até registros íntimos feitos por ela mesma pouco antes de sua morte, em 2023.
A escolha de centrar a narrativa na voz de Rita é acertada, mas também arriscada. Por um lado, preserva sua autenticidade — algo raro em documentários biográficos, que muitas vezes caem na armadilha de interpretar o artista em vez de deixá-lo falar. Por outro, essa opção limita o escopo da obra. Como admirador fervoroso de Arnaldo Baptista, seu primeiro marido e parceiro criativo no Os Mutantes, confesso minha frustração ao ver essa fase crucial de sua carreira tratada com certa superficialidade. Rita Lee ficou mais famosa em sua carreira solo, mas foi nos Mutantes que ela forjou sua irreverência e sua ousadia artística. O documentário até menciona o grupo, mas evita mergulhar nas contradições e nos conflitos que marcaram aqueles anos — talvez por questões de direitos ou por uma escolha narrativa de focar no indivíduo, não no coletivo.

Visualmente, Ritas é um espetáculo. A direção de fotografia abraça a estética psicodélica e colorida que Rita incorporou em sua música. Cenas de arquivo são tratadas como quadros vivos: fotos ganham movimento, shows antigos são intercalados com animações que remetem a colagens de revista, e as transições entre décadas são feitas com um fluxo orgânico, quase musical. Essa abordagem não é apenas decorativa; ela traduz em imagens o que Rita foi: uma artista que misturava pop, rock, nonsense e crítica social numa mesma canção, tudo isso de uma maneira muito popular.
Um dos momentos mais potentes do filme é justamente uma dessas intervenções visuais. Em uma sequência, Rita aparece nos anos 70, liderando o Tutti Frutti, com dois homens fazendo backing vocal atrás dela. A imagem, sem nenhum comentário adicional, fala mais sobre seu enfrentamento ao machismo do que qualquer discurso. A direção opta por mostrar, não explicar — e isso é cinema.
A montagem, assinada pelo próprio Oswaldo Santana, é outro destaque. O filme não se prende a uma estrutura rígida; em vez disso, dança entre os momentos da vida de Rita como se fosse um de seus shows. As músicas não são meras ilustrações — elas conduzem a narrativa. “Ovelha Negra”, “Mania de Você” e “Caso Sério” surgem não como hits isolados, mas como capítulos de uma história maior.
No entanto, essa liberdade tem um preço. Em alguns momentos, Ritas parece hesitar entre ser uma biografia convencional e um experimento livre. A cronologia às vezes se perde, e blocos temáticos — como sua relação com Roberto de Carvalho ou sua paixão por animais — surgem sem muita conexão com o que veio antes. Não chega a ser um problema grave, mas dá a sensação de que o filme poderia ter se aprofundado mais se abraçasse totalmente sua proposta não-linear.

Aqui, volto ao meu incômodo pessoal. Rita Lee foi muitas coisas: a roqueira rebelde, a compositora de baladas, a ativista pelos animais, a avó divertida. Mas sua fase nos Mutantes foi onde ela se tornou lenda, mesmo muito jovem. O documentário menciona o grupo, claro, mas evita polêmicas (como o conflito com os irmãos Baptista) e não explora a genialidade caótica daqueles anos. É uma ausência sentida, especialmente para quem, como eu, vê naquela época o cerne criativo mais radical de Rita.
Dito isso, entendo a escolha dos diretores. Ritas não quer ser um tratado sobre Os Mutantes; quer ser um retrato íntimo da artista. E nisso, ele acerta. As cenas caseiras, filmadas pela própria Rita, são de uma doçura rara. Vemos ela rindo, cuidando de seus bichos, falando sobre morte sem melodrama. É nessas horas que o documentário brilha — quando deixa de ser um filme sobre Rita e passa a ser um filme com ela.
O último ato de Ritas é seu mais emocionante. A entrevista final, gravada pouco antes de sua morte, não soa como um testamento, mas como uma despedida leve, quase alegre. Rita fala sobre envelhecer, sobre música, sobre o amor por Roberto — e tudo parece fazer parte de um mesmo fluxo natural, como se a vida e a arte nunca tivessem se separado nela.

O filme começa com Rita cantando, termina com Rita rindo. Entre um ponto e outro, não há uma jornada heroica, mas uma sucessão de momentos — alguns brilhantes, outros triviais, todos dela. Se Ritas não esgota a complexidade da artista (e nem poderia), ao menos consegue algo mais valioso: faz a gente sair da sala querendo ouvir suas músicas de novo, como quem reencontra um velho amigo.
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