Crítica | A Luz: um caleidoscópio de humanidade e desespero
Imovision/Divulgação

Crítica | A Luz: um caleidoscópio de humanidade e desespero

Berlim não é apenas uma cidade; é um organismo vivo, um ser que respira contradições. Em A Luz, o diretor Tom Tykwer não nos mostra a capital alemã como cartão postal, mas como um labirinto de almas perdidas, onde a conexão humana é tão frágil quanto o sinal de Wi-Fi em um metrô lotado. O filme é um experimento audacioso — parte sátira social, parte musical psicodélico, parte drama familiar desmontado. Com 160 minutos de duração, ele exige paciência, mas recompensa com cenas que ficam gravadas na retina muito depois que as luzes do cinema se acendem.

Tykwer, conhecido por “Corra, Lola, Corra”, aqui abraça a sátira e o surrealismo com uma ousadia que beira a megalomania. A trama gira em torno dos Engels: Tim (Lars Eidinger), o pai obcecado por marketing digital; Milena (Nicolette Krebitz), a mãe ausente, dividida entre Berlim e Nairobi; Frieda (Elke Biesendorfer), a filha adolescente perdida em clubes noturnos e decisões irreversíveis; e Jon (Julius Gause), o filho que encontra refúgio em mundos virtuais. Eles não vivem juntos; coexistem. A chegada de Farrah (Tala Al Deen), uma refugiada síria que trabalha como empregada doméstica (mas é, na verdade, uma terapeuta sem licença), funciona como um catalisador para suas crises. Ela traz consigo uma lâmpada piscante — objeto que mistura misticismo e psicologia — e uma missão: curar essa família disfuncional.

O filme é uma colagem de gêneros. Em um momento, estamos diante de um drama social cru; no seguinte, mergulhamos em números musicais que parecem escapados de um sonho febril. Eidinger, como Tim, tem uma cena em que canta uma balada de autopiedade em um supermercado — e é tão absurdo quanto genial. Já Frieda, interpretada por Krebitz, vive sequências quase expressionistas, onde animação e live-action se misturam para traduzir sua angústia. Tykwer não tem medo do excesso; ele abraça o caos estilístico como um reflexo do mundo que critica. A fotografia, por vezes saturada, por vezes sombria, reforça essa dualidade. As cenas em Berlim são geladas, azuladas; já os interlúdios oníricos explodem em cores, como se a única fuga possível fosse a fantasia.

Crítica | A Luz: um caleidoscópio de humanidade e desespero
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Mas é justamente nessa ambição desmedida que A Luz tropeça. O roteiro, repleto de temas urgentes — solidão masculina, privilégio branco, burocracia migratória —, acaba por não desenvolver nenhum deles com profundidade. A crise de Frieda, por exemplo, envolve um aborto clandestino, mas a questão é abandonada tão rápido quanto surge. Farrah, personagem mais interessante, fica relegada ao papel de “salvadora estrangeira”, um arquétipo problemático. Sua história pessoal — incluindo um passado traumático e uma família misteriosamente confinada — é tratada com superficialidade, como se sua única função fosse iluminar os dramas dos alemães. Há uma ironia cruel nisso: o filme prega empatia, mas falha em estendê-la à sua própria protagonista síria.

Ainda assim, há uma honestidade brutal em como Tykwer expõe as neuroses de seus personagens. Jon, o filho gamer, tem uma sequência de dança aérea com seu crush virtual — uma metáfora linda (e um tanto pretensiosa) sobre o amor na era digital. Já o pequeno Dio (Elyas Eldridge), filho ilegítimo de Milena, rouba cenas com uma coreografia animada ao som de “Bohemian Rhapsody”. Esses momentos de puro êxtase são o que salvam o filme de ser apenas um manifesto confuso. Eles mostram Tykwer em seu melhor: um diretor que entende que cinema é, antes de tudo, emoção.

O final, no entanto, é onde A Luz mais divide. Sem revelar, digamos que o cineasta opta por um tom sombrio, quase apocalíptico, que contrasta violentamente com o tom satírico do início. É uma guinada arriscada — alguns diriam desleal — com o diretor parece dizer que a cura para nossos males coletivos talvez nunca venha, e o máximo que podemos fazer é seguir em frente, mesmo que tropeçando.

Crítica | A Luz: um caleidoscópio de humanidade e desespero
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A Luz oscila entre o genial e o pretensioso, entre o comovente e o exasperante. Mas é justamente essa instabilidade que o torna fascinante. Como um caleidoscópio, ele muda de forma a cada movimento, mostrando padrões diferentes dependendo do ângulo em que se olha.

E quando as luzes se acendem, o que fica não é uma mensagem clara, mas uma sensação — aquela de que, no meio de tanta escuridão, às vezes basta um único raio de luz para lembrar que ainda estamos vivos. Talvez seja isso que Tykwer queria dizer o tempo todo.

Emmanuelle é um dos filmes que compõem o 1º Festival de Cinema Europeu Imovision, confira a programação completa aqui.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.