Há uma ironia cruel no título do oitavo episódio de Demolidor: Renascido: “Ilha da Alegria”. A frase, que poderia ser um convite a um refúgio paradisíaco, aqui se transforma em uma armadilha claustrofóbica, onde personagens dançam literal e metaforicamente sobre um vulcão prestes a explodir. Este é o episódio em que a série finalmente entrega o que prometeu desde o primeiro ato: um confronto direto entre Matt Murdock (Charlie Cox) e Wilson Fisk (Vincent D’Onofrio), temperado com a reentrada de Mercenário (Wilson Bethel) no jogo e revelações que redefinem lealdades. Mas, mais do que isso, é um capítulo que exemplifica como a linguagem visual e narrativa pode elevar — ou limitar — um drama baseado em quadrinhos.
O peso das cores e das escolhas
A direção de Justin Benson e Aaron Moorhead, responsáveis pelos episódios “novos” após a reformulação criativa da série, imprime um estilo distinto. Há um cuidado quase obsessivo com a paleta de cores, especialmente o azul que acompanha o Mercenário — desde a rosa azul na abertura até os tons frios da prisão onde ele está confinado. Essa escolha não é aleatória: no universo dos quadrinhos, o azul frequentemente simboliza frieza, obsessão e, no caso do Mercenário, uma precisão mortal e desumana. A fotografia trabalha com contrastes marcantes, especialmente no baile de gala em preto e branco, onde o vestido vermelho-sangue de Vanessa Fisk (Ayelet Zurer) destoa deliberadamente, sinalizando que ela é a peça disruptiva naquela noite de aparências.

A coreografia da cena de fuga de Mercenário na prisão é um dos momentos mais inventivos da série até agora. A sequência em que ele cospe um dente como projétil poderia ser ridícula em outras mãos, mas a edição rápida e o som agudo do impacto no olho do guarda a tornam visceral. A violência aqui não é gratuita; ela reforça a natureza quase sobrenatural da habilidade do personagem, algo que os quadrinhos sempre trataram como parte de seu horror.

O jogo de poderes e segredos
O episódio é construído como um tabuleiro de xadrez, onde cada personagem avança com motivações ocultas. Matt, ainda enlutado pela morte de Foggy, descobre que seu parceiro não foi morto por acaso: Foggy estava prestes a vencer um caso importante, e alguém quis silenciá-lo. A cena em que Matt revisita o bar de Josie e percebe, pelo drink que Foggy pediu, que ele celebrava antecipadamente uma vitória, é um detalhe sutil e eficaz. Mostra como o roteiro, quando quer, sabe usar mostre, não fal — uma técnica que a série nem sempre aplica com sucesso (como no caso do subplot de Adam, resolvido de forma apressada e de forma bastante desinteressante).
Enquanto isso, os Fisks vivem seu próprio drama conjugal. Vanessa, após descobrir que Fisk manteve seu amante preso em um porão, não hesita em executá-lo. O momento é chocante, mas também revelador: Vanessa não é a vítima que parecia. Ela é tão calculista quanto o marido, e sua reconciliação os transforma no “casal do mal” mais perigoso desde Tony e Carmela Soprano. A escolha de Vanessa pelo vestido vermelho no baile não é só um contraste estético; é uma declaração de poder. Ela não está mais nos bastidores.

O baile e a bala
O clímax do episódio acontece no baile, onde todos os fios narrativos se entrelaçam. Matt, finalmente confrontando Fisk, descobre que foi Vanessa quem ordenou a morte de Foggy — uma revelação que muda tudo. No meio da ação Matt ouve o clique da arma do Mercenário. O herói, então, faz o impensável: salva Fisk, levando um tiro no lugar dele.
Esse momento é carregado de simbolismo. Matt, mesmo sabendo que Fisk é um monstro, não consegue deixar de agir como um herói. É uma alegoria clara para a natureza inescapável do Demolidor: ele não luta por ódio, mas por um código moral que o obriga a proteger até seus inimigos. A fotografia aqui usa tons quentes — o vermelho do sangue, o dourado das luzes — para contrastar com o preto e branco do evento, destacando a ruptura da ordem.

Os fios que faltam
Apesar dos bons momentos, o episódios carrega alguns problemas que se estendem no decorrer dessa temporada, como o arco de Heather Glenn (Margarita Levieva), que continua sendo o calcanhar de Aquiles de Renascido. Suas críticas ao Demolidor como “um menino imaturo atrás de uma máscara” soam vazias porque a série não desenvolveu sua perspectiva o suficiente. Ela tem razão em questionar Matt, mas a narrativa claramente privilegia o ponto de vista dele, tornando suas cenas mais um obstáculo do que um diálogo legítimo.
Já a subtrama de BB Urich (Genneya Walton) e Daniel Blake (Michael Gandolfini) ganha corpo aqui, com a revelação de que BB sempre soube da conexão de Fisk com a morte de seu tio Ben. É um twist inteligente, que justifica sua aproximação do prefeito, mas a série ainda não explorou suficientemente o potencial dramático disso.
No início desta análise, falei sobre a ironia do título Ilha da Alegria. Agora, no fim, fica claro que a alegria aqui é uma ilusão — assim como a ideia de que Matt Murdock pode separar sua vida pessoal de sua missão como Demolidor. O episódio encerra com ele sangrando no chão, Fisk em choque e Mercenário à solta. É um final que ecoa o primeiro episódio, onde tudo começou com uma bala e um segredo.
A temporada, que até então oscilou entre procedural e drama serializado, finalmente encontra seu tom ideal: um thriller noir com raízes nos quadrinhos, mas que não tem medo de inovar na forma. Se o último episódio mantiver esse ritmo, Demolidor: Renascido pode cumprir sua promessa de renascer não só como uma sequência da série da Netflix, mas como uma obra com identidade própria. E, no fim das contas, é isso que um bom herói faz: honra o passado, mas nunca para de se reinventar.
Os episódios novos da 1ª temporada de Demolidor: Renascido são lançados todas as terças-feiras, exclusivamente no Disney+.
Leia sobre os episódios anteriores:
- Primeiras Impressões | Demolidor: Renascido
- Crítica | Demolidor: Renascido – 1×3: Justiça sem máscara, heróis sem paz
- Crítica | Demolidor: Renascido – 1×4: Justiça, sistema e a sombra do Justiceiro
- Crítica | Demolidor: Renascido – 1×5: Um herói sem capa, mas não sem causa
- Crítica | Demolidor: Renascido – 1×6: Quando os demônios voltam à tona
- Crítica | Demolidor: Renascido – 1×7: Arte sangrenta, conclusão rasteira
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