Em um universo onde viagens no tempo e alienígenas cantores são parte do cotidiano, Doctor Who sempre soube usar o absurdo para falar do humano. E no episódio “O Festival Interestelar da Canção”, a série mergulha em um tema tão antigo quanto a própria civilização: a vingança como ciclo inescapável. A narrativa, que à primeira vista parece uma sátira musical do Eurovision no espaço, acaba revelando-se muito mais do que uma comédia cósmica — é uma reflexão sobre espetáculo e dor, disfarçada de glitter e palcos brilhantes.
A premissa soava como um risco: como recriar a grandiosidade kitsch do Eurovision sem cair no pastiche ou no orçamento inflacionado? A resposta está na direção de arte, que opta por um equilíbrio sagaz. Os cenários são luxuosos, mas não excessivos; as coreografias, exuberantes, porém breves. A luz neon que banha o palco da Arena da Harmonia não é mero adereço — é um contraste deliberado com a escuridão do vácuo espacial, lembrando-nos que, por trás do brilho, há sempre um abismo.

O roteiro de Juno Dawson sabe jogar com essa dualidade. Enquanto Rylan (uma figura tão britânica que quase vira uma piada interna) comanda o show com charme irreverente, o vilão Kid (Freddie Fox) puxa o gatilho de um massacre silencioso: desativa o escudo da arena, e milhares de espectadores são sugados para o espaço em câmera lenta. A escolha técnica aqui é brilhante — a trilha some, substituída pelo silêncio absoluto, e os corpos flutuam como confetes macabros. É uma imagem que fica, ainda que a série, fiel ao seu DNA, amenize o impacto minutos depois.

Ncuti Gatwa, como o Doutor, vive seu momento mais sombrio até agora. Convencido de que sua companheira morreu, ele tortura Kid com frieza. A cena é incômoda, não pela violência em si, mas pela falta de peso dramático que a justifique. Gatwa entrega uma atuação potente, mas o roteiro não lhe dá motivos suficientes para tal escalada — sabemos desde cedo que Belinda (Varada Sethu)está viva, o que transforma a fúria do Doutor em teatro vazio. É uma rara falha em um episódio que, de outra forma, navega bem entre humor e tragédia.

Felizmente, os momentos leves salvam o tom. Os fãs Mike e Gary (Kadiff Kirwan e Charlie Condou, respectivamente) roubam cenas com seu entusiasmo ingênuo, lembrando que Doctor Who ainda sabe rir de si mesmo. E a canção final de Cora (Miriam-Teak Lee), longe de ser um número esquecível, carrega uma melancolia que ecoa o tema central: enquanto alguns celebram a sobrevivência, outros carregam perdas irreparáveis. A música, aqui, não é só entretenimento — é luto.
Mas o que realmente eleva o episódio são suas surpresas narrativas. A aparição de Carole Ann Ford como Susan, a neta esquecida do Doutor, é um presente emocional para fãs antigos. E a revelação final — Mrs. Flood como uma encarnação da Rani, agora interpretada por Archie Panjabi — sugere que a vilã clássica ganhará nuances inéditas. Se antes ela era uma cientista sem escrúpulos, agora há hierarquia, submissão e talvez até uma pitada de sadismo.
O que parecia um episódio autoconclusivo sobre um concurso musical revela-se o prólogo de um final de temporada ambicioso. A Terra está prestes a cair, Susan voltou, e a Rani está nos bastidores, ajustando os fios do palco. Resta ao Doutor decidir se, diante de tantas cicatrizes reabertas, ele será o herói ou apenas mais um ator nesse espetáculo infinito. Afinal, no universo de Doctor Who, até as estrelas cadentes são, no fundo, corpos em queda livre.
Os episódios novos da 2ª temporada de Doctor Who são lançados aos sábados, exclusivamente no Disney+.
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