Alguns álbuns conseguem atravessar o tempo, não só por sua qualidade, mas porque capturam algo essencial sobre o período em que foram criados. Carlos, Erasmo, lançado em 1971, é um desses casos. O álbum marcou a carreira de Erasmo Carlos como um salto ousado, saindo da leveza juvenil da Jovem Guarda para mergulhar em temas mais profundos, enquanto o Brasil vivia sob a sombra do regime militar. Recentemente, o filme “Ainda Estou Aqui” trouxe o disco de volta aos holofotes, reacendendo o interesse por uma obra que continua vibrante e atual.
Se você já se pegou pensando no porquê de um álbum como esse continuar tão relevante, a resposta está na mistura única que ele oferece: uma combinação de letras diretas, arranjos sofisticados e um artista que decidiu ir além do que se esperava dele. Em meio à ditadura militar, com censura e repressão por toda parte, Carlos, Erasmo se tornou um respiro criativo – e, sem dúvida, uma resistência artística.
Desde o início, Carlos, Erasmo se apresenta como algo diferente. “De Noite na Cama”, a faixa que abre o disco, foi escrita por Caetano Veloso enquanto vivia no exílio, longe do Brasil. Com uma pegada irreverente, que mistura samba-rock e soul, a música carrega uma alegria que parece dançar em contraste com o peso político daquele momento. Ao escolhê-la como introdução, Erasmo já dava um recado: este não seria apenas um álbum de transição em sua carreira, mas também uma declaração de identidade artística.
Mas logo nas primeiras faixas o clima leve se transforma. “É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo” surge como um ponto de ruptura emocional no disco. Composta em parceria com Roberto Carlos, a canção é um retrato cru de um país em colapso. O verso “Estou envergonhado com as coisas que eu vi / Mas não vou ficar calado” ecoa como um manifesto, e a guitarra marcante de Lanny Gordin amplifica a força da mensagem. A música é um grito sufocado, que ao mesmo tempo inspira coragem e faz o ouvinte sentir o peso do que estava em jogo.
Essa capacidade de alternar entre momentos de celebração e introspecção é o que torna Carlos, Erasmo tão cativante. Cada faixa parece ter seu lugar exato, compondo um mosaico de sentimentos que vai além do contexto político. “Masculino, Feminino”, por exemplo, é uma das músicas mais delicadas do álbum. O dueto entre Erasmo e Marisa Fossa adiciona uma suavidade quase mágica, criando um contraste interessante com as canções mais carregadas do disco.
Já “Dois Animais na Selva Suja da Rua”, escrita por Taiguara, é visceral em sua abordagem. Com guitarras intensas e uma letra que captura a dureza da vida urbana, a música é um exemplo de como Erasmo conseguiu absorver influências de rock e MPB sem abrir mão de sua identidade. Aqui, ele mostra que estava disposto a explorar novos territórios musicais, algo que seria reforçado ao longo do álbum.
A produção, assinada por Nelson Motta, e os arranjos de Chiquinho de Moraes são parte essencial do impacto de Carlos, Erasmo. O disco tem uma textura sonora rica, que combina elementos de funk, soul e até toques de psicodelia, mas sempre mantendo um pé na música brasileira. Esse equilíbrio entre o sofisticado e o acessível é evidente em faixas como “Mundo Deserto”, onde o funk encontra o soul em um clima quase cinematográfico.
Por outro lado, “Não Te Quero Santa” retorna à introspecção. A interpretação de Erasmo aqui é tão sincera que parece uma conversa particular com o ouvinte, algo que ele faz com maestria ao longo de todo o álbum. Essa proximidade é uma das razões pelas quais o disco continua a ressoar, mesmo tantos anos após seu lançamento.
Carlos, Erasmo vai além de sua qualidade técnica ou das parcerias de peso que o sustentam. É a forma como ele reflete um momento histórico e, ao mesmo tempo, ultrapassa suas fronteiras. Suas músicas falam sobre amor, resistência e desejo de liberdade – sentimentos universais que se renovam a cada geração.
Hoje, ouvir Carlos, Erasmo é como redescobrir uma peça essencial da história da música brasileira. É impossível não traçar paralelos entre o Brasil de 1971 e o de agora, especialmente quando se ouve “É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo”. O lembrete de que “algo precisa ser feito” continua tão urgente quanto era há cinco décadas.
Erasmo Carlos nos deixou em 2022, mas sua obra permanece viva, pulsando com relevância. Ao final de Carlos, Erasmo, quando os últimos acordes de “Mundo Deserto” se dissipam, há uma sensação de ciclo se fechando, como se tudo que foi apresentado no álbum culminasse em um convite à reflexão. Não importa quantas vezes você volte a ele, o disco sempre terá algo novo para oferecer – um conselho, uma memória ou simplesmente uma boa música para ouvir em momentos difíceis. Como o título do filme sugere, Carlos, Erasmo ainda está aqui – e não há dúvida de que continuará por muito tempo.
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Todos querem saber de quem é o solo de sax tenor em ” É preciso dar um jeito, meu amigo”, mas é uma incrível falta de respeito com a memória dos músicos.