Você já assistiu o metafórico filme iraniano em preto e branco?
A Vaca/Reprodução

Você já assistiu o metafórico filme iraniano em preto e branco?

Se você já passou algum tempo nas redes sociais ou em grupos de discussão sobre cinema, provavelmente já se deparou com a piada: “Ah, claro, mais um daqueles filmes iranianos em preto e branco, de 1939 né?”. À primeira vista, parece uma brincadeira inofensiva, uma zoeira sobre um cinema que, para muitos, soa distante e difícil.

Mas, se olharmos com mais atenção, essa “piada” carrega consigo uma carga de anti-intelectualismo e racismo orientalista que merece ser desmontada. Por trás dessa fala, há uma simplificação grosseira de uma cinematografia rica, diversa e profundamente conectada com a história política e social de um país. Então, vamos falar sério: o cinema iraniano não é um gênero, não é uma piada, e muito menos um monólito. É, sim, uma janela para um dos cinemas mais fascinantes e importantes do mundo.

O que há por trás da piada?

A piada do “filme iraniano em preto e branco metafórico” não surge do nada. Ela reflete um olhar ocidental que tende a reduzir culturas inteiras a estereótipos. O Irã, no imaginário popular, muitas vezes é visto como um país exótico, distante, mergulhado em tradições antigas e governado por um regime teocrático rígido. Essa visão simplista ignora a complexidade de uma nação com uma história milenar, uma cultura vibrante e uma população que luta diariamente por liberdade e expressão. Quando essa visão é transportada para o cinema, o resultado é uma caricatura: filmes lentos, monocromáticos, cheios de simbolismos incompreensíveis. Mas, como veremos, essa caricatura não faz justiça à realidade.

O cinema iraniano é muito mais do que isso. Ele é plural, variado e profundamente conectado com as questões sociais e políticas do país. E, sim, alguns filmes são mais lentos em preto e branco, mas isso não é um acidente ou uma escolha estética vazia. É uma resposta a um contexto político opressivo, onde a liberdade de expressão é constantemente ameaçada. Falar sobre isso é essencial para entender por que o cinema iraniano é tão relevante.

O cinema iraniano não é um gênero

Antes de tudo, é importante deixar claro: o cinema iraniano não é um gênero. Quando falamos de filmes iranianos, estamos nos referindo a obras produzidas em um país específico, com uma história e uma cultura próprias. Dentro do Irã, há diversas escolas, estilos e visões. Há filmes que são dramas realistas, outros que são comédias, alguns que são experimentais, e muitos que misturam tudo isso.

Abbas Kiarostami, por exemplo, é conhecido por seus filmes poéticos e contemplativos, como “O Gosto da Cereja” (1997). Já Jafar Panahi, em “O Espelho” (1997), brinca com as fronteiras entre ficção e documentário, criando uma narrativa que questiona a própria natureza do cinema. E há também Asghar Farhadi, cujos filmes, como “A Separação” (2011), são dramas familiares intensos e cheios de nuances.

Você já assistiu o metafórico filme iraniano em preto e branco?
O Gosto da Cereja/Reprodução

Ou seja, não faz sentido reduzir toda essa diversidade a uma piada sobre filmes metafóricos. Seria como dizer que todos os filmes brasileiros fossem só sobre pobreza e sertão – sério, tem gente que acredita nisso.

O cinema como resistência

O cinema iraniano não é apenas uma forma de arte; é também um ato de resistência. Em um país onde a liberdade de expressão é limitada, fazer filmes que desafiam as normas do regime é um ato corajoso. Diretores como Jafar Panahi e Mohammad Rasoulof foram presos por suas obras. Panahi, por exemplo, foi proibido de fazer filmes por 20 anos, mas continuou produzindo de forma clandestina. Seu filme “Isto Não É um Filme” (2011) foi gravado em seu apartamento e contrabandeado para fora do Irã em um pen drive escondido dentro de um bolo. Já “A Semente do Fruto Sagrado” de Rasoulof está representando a Alemanha no Oscar deste ano porque cineasta foi condenado pelo sistema judicial da República Islâmica por “conluio contra a segurança nacional”.

Essa luta pela liberdade de expressão é o que torna o cinema iraniano tão relevante. Ele não apenas reflete a realidade do país, mas também a transforma. Filmes como “A Separação”, que trata de questões como justiça e moralidade, ou “O Espelho”, que explora a subjetividade e a identidade, são mais do que obras de arte; são documentos de uma sociedade em conflito.

Perca esse medo e assista filmes iranianos

Então, por que você deveria assistir filmes iranianos? Primeiro porque a cinematografia iraniana é conhecida por sua beleza e originalidade, com diretores que usam a câmera de formas inovadoras desde a época que o cinema era realmente só em preto e branco. Segundo, porque eles oferecem uma janela para um mundo que muitas vezes é mal compreendido. Através desses filmes, podemos ver a humanidade por trás dos estereótipos e entender as complexidades de uma cultura que é frequentemente reduzida a clichês.

E, finalmente, porque esses filmes nos desafiam. Eles nos convidam a pensar, a refletir, a questionar. Eles não são feitos para nos entreter de forma fácil, mas para nos mover, nos incomodar, nos transformar. E, em um mundo onde o cinema muitas vezes é reduzido a entretenimento descartável, isso é algo precioso.

Então, da próxima vez que alguém fizer a piada do “filme iraniano em preto e branco metafórico”, você já sabe: essa fala não é só uma simplificação grosseira, mas também um reflexo de um olhar orientalista que reduz culturas inteiras a estereótipos. O cinema iraniano é muito mais do que isso. Ele é uma prova de que, mesmo sob as condições mais adversas, a arte pode florescer e nos conectar com o que há de mais profundo na experiência humana. E, no final das contas, não é isso que o cinema deveria ser?

Então, que tal dar uma chance a esses filmes? Quem sabe você não descobre um novo favorito? E, quem sabe, no processo, você também descubra um pouco mais sobre o mundo e sobre si.

As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade única do autor. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Conecta Geek.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.