Crítica | Levante: rede de apoio e a hipocrisia cristã

Ousado, plural e intimista. Levante, o novo filme de Lillah Halla (“Menarca”) arrisca em levantar a bola tão alto num drama adolescente que discute vivências queer, o mundo do esporte, religião e aborto. Embora não seja uma jogada perfeita, o longa é, facilmente, o melhor filme nacional lançado até agora.

A escolha de Sofia

A história de Levante está sob a perspectiva de Sofia (Ayomi Domenica), uma jovem de 17 anos que, às vésperas de um campeonato de vôlei decisivo para seu futuro como atleta, descobre uma gravidez indesejada e vê seu mundo cair.

Ao tentar interromper a gravidez de maneira clandestina – uma vez que o aborto é criminalizado no Brasil – , a adolescente se torna alvo de um grupo conservador decidido a detê-la custe o que custar. Para resistir à violência dos fundamentalistas, Sofía conta com uma importante rede de apoio, cujo grande pilar é seu time de vôlei, mas também conta com os cuidados da treinadora Sol (Grace Passô) e de seu pai, João (Rômulo Braga).

O roteiro de Lillah com María Elena Morán é marcado pela intensidade e veracidade. As falas, as brincadeiras, sobretudo das meninas do time de vôlei sua muito natural. No entanto, existem momentos do texto, reforçados pela direção e luz, que o longa flerta com outras linguagens, saindo do tradicional neorrealismo do nosso cinema ficcional.

Loro Bardot e Ayomi Domenica em cena de Levante (Foto: Majericão Filmes/Divulgação)

O roteiro é preciso, mas o grupo de atrizes que compõe o time, chama o filme pra si. Se os temas aborto e perseguição de grupos religiosos são pesados, são as meninas que trazem leveza para o filme, com momentos de pura bobeira adolescente, como de sensibilidade ao apoiar Sofia, que sente o peso do mundo em suas costas desde que descobriu a gradizes.

Corpos e sons

A sinergia do elenco é valorizada pela câmera de Lillah. Com planos-detalhe – ou com treveling em cenas que a câmera passeia no vestiário do time – a diretora faz questão de mostrar a diferença de cada uma, seus corpos de forma nada objetividade, mas como diferentes formas de poder e unicidade. É a força dos músculos, um corte de cabelo diferente e até uma aplicação hormonal é exaltada pelas lentes da diretora. Esses detalhes reforçam que esses elenco não foi escolhido só pela diversidade, mas que cada personagem é única e muito mais que estereótipos queer.

Sem objetificação, a câmera de Lillah explora e exalta corpo e individualidades do elenco (Foto: Majericão Filmes/Divulgação)

Essa juventude tem uma trilha sonora. Sons periféricos. BADSISTA, Drik Barbosa, MC Carol, Irmãs de Pau e Linn da Qubrada são algumas das artistas que compõe a trilha sonora, não só do filme, mas do dia a dia dessas personagens, como reforçado em diversas cenas.

Mas não é só do grupo das jovens jogadoras de vôlei que o longa dialoga. A protagonista é órfã e pela vivência do lado de Sol, dá para perceber que a treinadora preenche, em partes, essa lacuna. A personagem traz um elo com uma geração que, pela idade, compreende a dor – não só da protagonista – feminina, mas que também tem que saber jogar o jogo dos intolerante.

Mas talvez o maior ponto de sensibilidade e destreza no texto de Levante está na abordagem de João, o pai de Sofia.

O debate é de todos

Introduzido de forma como se fosse apenas uma figura de segundo plano, João ganha importância a partir do momento que sabe da gravidez da filha. Braga entrega um trabalho de atuação incrível pela sutileza e sensibilidade.

João, pai de Sofia é a representação do papel do homem no debate do filme (Foto: Majericão Filmes/Divulgação)

De forma explícita a diretora diz ao espectador que homens podem – e devem – compor essa rede de apoio. Evidentemente, sem o poder de decisão sobre o corpo de uma mulher, mas que só por não se isentar dessa situação, já faz uma grande diferença.

O vôlei não importa

Levante tem o aborto como tema central, no entanto, ao abraçar tantas subtramas, o elemento esportivo, não só está em segundo plano, como não gera emoção nenhuma. Somado isso a cenas com planos muito fechados e com diversos cortes rápidos, os momentos do vôlei são fracos até por não entendermos bem o que acontece em quadra.

Para ser justo, filmar um esporte tão dinâmico é extremamente complexo. Soma-se isso com o fato do vôlei não ser lá tão importante assim para a história central, que deu pra notar uma falta de carinho e emoção nesses momentos.

A hipocrisia cristã

É até difícil classificar como caractual a representação dos intolerantes no filme. Afinal, a realidade no Brasil nos prova diariamente, que os absurdos são normalizados.

Em Levante, a personagem Glória (Gláucia Vandeveld) é a personificação dessa hipocrisia cristã. Apresentada como uma mulher simpática, ela vai, gradativamente, aumentando o tom, de forma passivo-agressiva ela inicia suas primeiras agressões verbais. Mas a gente sabe bem como funciona na vida real, o ódio desses grupos não termina no discurso.

O Levante de uma juventude que não vai se calar

A coletividade é o caminho para a vitória (Foto: Majericão Filmes/Divulgação)

Talvez a melhor aplicação do vôlei seja pelo seu valor metafórico. O filme é sobre o levante de uma juventude sexualmente fluida e periférica, que só sobrevive porque bate de frente com os problemas – reforçado pela música  “Mate & Morra”, de Linn da Qubrada com BADSISTA. Por meio de seu filme, Lillah grita cinematograficamente que a vitória só vai acontecer se organizarmos nosso ódio de forma conjunta, como um time bem entrosado. Essa ideia de coletividade também é reforçada pelo fato de João ser um apicultor, afinal, o mel é um produto fruto do esforço coletivo de centenas de abelhas organizadas.

Levante traz em tela uma discussão sobre o aborto, como uma gravidez indesejada pode acabar com a única esperança de uma pessoa periférica, mas para além disso, a potência do filme de Lillah Halla está na abordagem da representação dessa juventude diversa e como as redes de apoio tiram pessoas da escuridão.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.