Crítica | Chumbo mostra a ditadura brasileira sob o olhar de uma família

Em 2024 completa 60 anos do golpe militar no Brasil e da ditadura que durou de 1964 até 1985. Diversas obras em quadrinhos já retratam esse período, como Ditadura no Ar, Subversivos e Notas de um Tempo Silenciado, e todas elas têm em comum serem feitas por brasileiros. Mas agora chegou a hora de um francês fazer uma obra sobre a ditadura no Brasil. Ela se chama Chumbo, escrita e desenhada por Matthias Lehmann, lançada pela editora Nemo.

Em Chumbo nós não vemos a história da ditadura contada em detalhes como tudo aconteceu e suas repercussões, mas sim a visão desse período sob o olhar de uma família rica de Belo Horizonte, que são donos de uma empresa de minério.

São nove capítulos ao todo, e entre eles acontecem saltos temporais bem longos. O quadrinho começa em 1937 e termina em 2003, então aqui a gente vai acompanhar uma história que acontece antes, durante e depois da ditadura brasileira.

É uma trama muito complexa, muito intrincada, com diversos núcleos de personagens e pessoas importantes, mas têm dois que vão ser os personagens principais de Chumbo: Severino Wallace e Ramires Wallace, dois irmãos extremamente diferentes entre si.

Em 1937, quando a história começa, vemos esses personagens ainda bem crianças, com seus 7 ou 8 anos de idade, e logo somos apresentados ao patriarca da família, Oswaldo Wallace, que de cara se mostra uma pessoa horrível, que tem uma empresa que dá muito dinheiro para ele, mas que não paga os funcionários há alguns meses, até que eles decidem fazer uma greve. 

O Oswaldo, como não aceitava aquela situação, contrata um homem chamado Porfírio, integrante do movimento Integralista, para torturar esse homem até que a greve pare. Então já vemos que o Oswaldo é uma pessoa que vai fazer qualquer coisa para alcançar seus objetivos, por mais errado que isso possa ser.

Passado um tempo, lá para o começo da ditadura, vemos os irmãos já crescidos e as diferenças entre eles começam a ficar bem claras. O Severino se torna um jornalista um jornalista de esquerda, totalmente contra a ditadura; e o Ramires é de direita e decide seguir os passos do pai na empresa de minério.

Apesar de continuar o negócio da família, o Ramires é uma espécie de parasita. Ele nunca se dedicou ao trabalho, tem diversas namoradas sem que nenhuma saiba da outra, chega a ter relações escondidas com homens também, e ele é viciado em apostar, sempre pedindo dinheiro para a família para pagar as pessoas, mas ao invés disso ele aposta mais e só faz crescer a dívida. E ele é aquele tipo de pessoa que prega por “Deus, pátria e família” e chama o que aconteceu de Revolução e não de golpe.

Enquanto isso, o Severino, em seu trabalho de jornalista, prega contra a ditadura, como tudo o que está acontecendo é horrível, mas quando chega a hora de lutar e fazer alguma coisa contra isso, ele foge para o meio do nada com medo. Mais para a frente ele acaba em um grupo de resistência meio que sem querer, é perceptível que ele não queria estar ali. Ele acaba preso, torturado, e só é liberado por ser filho de uma família extremamente importante na região. 

Então é muito interessante ver essa hipocrisia que o autor coloca nos dois personagens. O homem de direita que presa pela família mas trai todo mundo que se importa com ele; que presa por Deus, mas que quer ver as pessoas de esquerda mortas. E o homem de esquerda que estava achando ótimo falar contra a ditadura, e que todo mundo tem que se reunir para combater isso, mas quando chega essa hora ele foge. Aqui em Chumbo, o Matthias Lehmann mostra essa hipocrisia da família brasileira.

Mas a história vai muito além desses dois personagens. Tem a Iara, que acaba sendo um interesse amoroso dos dois personagens e vai ser muito importante para a história; o Porfírio que é o facista que aparece logo no começo e tem um desenvolvimento muito bom, a história das irmãs dos dois personagens, e por aí vai. São diversos núcleos, cada um extremamente bem desenvolvido, é realmente impressionante como a história não se perde em momento nenhum. 

Os desenhos também são lindíssimos, que passam exatamente o que cada personagem está sentindo somente pelas feições deles. Mas o mais incrível de tudo é o trabalho de pesquisa que o autor teve para conseguir retratar com muitos detalhes toda a arquitetura brasileira da época, propagandas nas ruas e na televisão. A arte é um show à parte. 

Chumbo é um dos melhores quadrinhos de 2024. Extremamente importante, bem escrito e bem desenhado. Deveria ser distribuído em escolas, bibliotecas e ser leitura obrigatória. É um quadrinho muito importante para a história do nosso país, que todo mundo deveria conhecer para entender o que aconteceu e nunca repetir essa era do Brasil.

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